Amostra do livro juvenil Você não é mais aquele garoto: capítulo 1, Um Estranho na Família ou uma Família de Estranhos?
Está toda a minha família reunida na casa dos meus avós paternos. Eu sempre vi esses encontros de família como uma oportunidade para passar momentos agradáveis com pessoas amadas. Ao invés disso, estou tendo um colapso nervoso.
É Natal, época em que todos se confraternizam apesar de terem passado o ano tentando passar a perna uns nos outros e falando mal de cada ser existente no planeta Terra, incluindo todos nós aqui presentes. Pelo menos na família do meu pai é essa a visão que se tem de harmonia familiar em tempos natalinos. Mas poderia durar mais um pouco, considerando que amanhã tudo volta ao normal e todos permanecerão se odiando.
O núcleo mais jovem da família é composto por Lúcio, que sou eu, e minha prima caçula Elsa. Elsa é querida por todos da família por ser a mais nova e eu adoro brincar com ela, embora no final sempre acabe chorando e sendo culpado por todos os males que atingem essa família enquanto ela convenientemente pega meus brinquedos, me impede de ver as ilustrações dos livros de história e trapaceia no Banco Imobiliário. É… Eu deveria ter aprendido a lição.
Mas, quando Elsa me convida para fugir de casa, a ideia me parece animadora. Nós dois somos viciados em cinema e adoramos brincar de alguma coisa que nos faça sentir como numa obra de Hollywood. O que eu não poderia supor é que, apesar de liderar o plano, ela iria pular fora o mais rápido possível e deixar toda a responsabilidade cair sobre o idiota aqui.
É claro que os adultos começam a me xingar sem nem checar os fatos. Eles têm sua predileção por Elsa, já eu sou o garoto mal-educado, a ovelha negra da família e minha mãe não sabe me criar. Pronto, para que tentar entender as pessoas se podemos rotulá-las, não é mesmo?
O problema é que há uma coisa que me incomoda ao extremo nesse mundo: muitas vozes falando juntas, ainda mais gritando, me repreendendo. Eu peço para sair de perto, mas ninguém me dá ouvidos. E aquilo vai entrando na minha cabeça de um jeito que eu não consigo controlar.
A sobrecarga sensorial é grande. Começo a chorar, a pular, a gritar, tudo porque não suporto mais aquela situação. Minha mãe, Laura, tenta falar comigo que eu estou passando uma imagem diferente da que sou, já que toda vez que encontro com meus parentes paternos dou chilique. Ela é a única a ficar do meu lado, contra tudo e todos, e sempre tenta entender a situação antes de me agredir.
“Mimado”, “birrento”, “mal educado”, é o que eu ouço de todos os lados. Eu queria tanto visitar meus parentes, e agora todos estão apontando o dedo para mim. A única conclusão a que posso chegar é: sou masoquista!
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” e é colunista da “Revista Autismo/Canal Autismo“ e do “Portal UAI“. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
Acessibilidades para uma explosão sensorial no autismo e o Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) são…
Sophia Mendonça e o Budismo: “Buda é aquele que consegue suportar” e mesmo o inferno…
Conto infantil é metáfora para o autismo? Youtuber e escritora Sophia Mendonça lança contação de…
Nunca Fui Beijada é bom? Drew Barrymore é a alma cintilante de clássico das comédias…
Pensamento lógico e o autismo. O que isso significa? Tenho considerado o peso da ponderação…
A perspectiva feminina no complexo terror juvenil Garota Infernal, escerito por Diablo Cody e com…