Toda mulher, em algum momento, de alguma forma, já sofreu algum tipo de abuso. O abuso de gênero acontece há tanto tempo que já devia ter sido eliminado. Um exemplo é a “Mega Star” Tina Turner, que teve a vida como tema de filme sobre os abusos sofridos. Abusos vindos do primeiro marido, Ike Turner, já em fins da década de 50.
Infelizmente, nós duas, Selma e Sophia somos também, exemplo de violência doméstica. Como elas foram feitas por pessoa com ligação afetiva, a vergonha e o sentimento de culpa eram recorrentes. Em nenhum dos casos houve agressão física, mas o constrangimento e a humilhação estavam ali, ao nosso lado.
Por isso, fomos terça, dia 20 de setembro, ao prédio da Fafich, na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Nossa amiga, Patrícia Prates, defendeu a dissertação de mestrado: “Grafias da vida entre o dano e a cura”. A orientadora, Sônia Pessoa, é a responsável pelo conceito de corpus sensível, identificado nesta dissertação. Ou seja, um conjunto de materiais de pesquisa, capaz de despertar sentimentos diversos em função dos sujeitos que o compõem, da fragilidade ou vulnerabilidade social, da dificuldade para a obtenção de dados, dos dilemas éticos e das reações institucionais que possam vir a surgir.
Entretanto, Pati, como carinhosamente a tratamos, nos convida, por meio de sua dissertação, a interagir com uma escrita viva e performática. Nela, os movimentos não cessam após a apresentação da pesquisa. Dessa forma, ela nos instiga a ver a cura sob outra perspectiva, nem sempre agradável, mas certamente necessária. Ela acontece após um processo de esgotamento total da vítima.
Começamos pela constatação de que essas (nós) mulheres buscam a sobrevivência nas sombras. A perseguição é uma constante. Na linha proposta do Afetos, vamos nos afetando pela história do outro, nos reconhecendo nela e, mais tarde constatando que “o sujeito precisa do outro para emergir de toda aquela triste realidade”.
Talvez o entendimento desse contexto de violência provoque a dor em nosso próprio corpo, como a nos lembrar que não se foge dele. É uma pesquisa de idas e vindas, costurando fragmentos, em que se vai e volta. Talvez essa volta seja para recolher os silêncios desse dizer fragmentado. E assim deve ser, pois nesses casos, o tempo é moeda forte. Há que se ter um tempo par a a vítima de abuso, num mundo em que ‘a razão hegemônica é masculina.’
Nesse cenário que nos atordoa, apontar alguém da família, é quase uma ofensa coletiva. É como se a família fosse outra instância. Assim, como pode o marido abusivo ser um bandido? A construção do machismo também revela fatos por todos nós conhecidos: a eterna culpa feminina. E é exatamente essa culpa que é usada como arma de dominação.
As desculpas para os homens se sucedem em profusão: ‘Ele é sistemático.’ ‘Não teve um dia bom, anda muito estressado.’ ‘No fundo, ele é gente boa.’ Há desculpa para cada ato de violência. Só não há para a mulher agredida, abusada, submetida.
Aliás, a própria mulher acaba por aceitar como natural, algo rotineiro, familiar. Como por exemplo, o tom professoral em que a crítica ao jantar começa a ser feita, até subir de tom. Ou mesmo a brincadeira que soa como um tapa na cara, mas que deve ser relevada, pois é apenas brincadeira.
Com quem se pode retomar as referências se nesta altura, amigos e família, já foram todos afastados pelo abusador? O fim das histórias se divide entre a morte e a fuga. Mas a fuga só acontece quando algo já se partiu nessa mulher. Quando o impossível se torna intolerável. A única saída é o basta, pois o coração está árido. Então, o extremo sufocamento as empurra para fora de tudo aquilo. É preciso deixar tudo para trás, o que significa a possibilidade de uma vida digna.
Começar novamente, criar “novos possíveis”. Essa seria a cura? Algo bonito, restaurador? Nem sempre. Aquela mulher continua vivenciando tudo aquilo que a fez sofrer por muito, muito tempo. Parece estar impregnado em cada parte de seu corpo. Mas Patrícia foi buscar a esperança na metáfora da ‘coivara’ e da dança japonesa ‘Butô’.
Na coivara, as palhas são ajuntadas e queimadas em determinado terreno, para torná-lo fértil, novamente. Um sacrifício, entretanto, de alto custo. A queimada é, também, uma espécie de incêndio.
A outra metáfora, nos remete ao estilo de dança japonesa: o Butô. A estética é impressionante que a tornou conhecida como a “dança das trevas”. É da mobilidade e/ou imobilidade das extremidades corporais, que os braços, as pernas, o tronco, o pescoço, a cabeça levam o performático a mergulhar na viagem corporal que conduz à poesia. Seria a metáfora da rede de apoio a essas mulheres. Talvez, aí resida a esperança.
Texto de Selma Sueli Silva, jornalista, escritora, creator e youtuber e de
Sophia Mendonça, mestre em Comunicação Social, desenvolvedora e escritora.
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