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Abuso de autoridade (Saga no Detran)

Dia desses, me confrontei com o abuso da posição de autoridade, por duas vezes. Tive de renovar minha carteira de habilitação. Atualmente, todo o processo é mais fácil. Ou pelo menos, deveria ser. Por exemplo, você solicita a sua renovação da Carteira Nacional de Habilitação, CNH, pelo site do Detran/MG. Ok! Mas, (de novo esse ‘mas’) as instruções não são dadas de forma inclusiva. Como autista interpretei literalmente uma orientação e aí… já era. Fui mandada à uma clínica bem longe de minha casa.

Tentei resolver e esbarrei no abuso de autoridade

Depois que uma informação é dada, o formulário não permite mudança. Nem pelo site e nem presencialmente. Tentei resolver por uma semana e, depois disso, me resignei e fui ao local com atendimento presencial. Certamente, não antes de marcar data e horário. Assim, lá fui eu, atravessar os 15 quilômetros entre minha casa e a Clínica do Detran. Mas antes…

Sucessão de demandas geradas por um site não inclusivo

Dessa maneira, desde que interpretei literalmente uma informação no formulário disponível no site, vi nascer uma lista de demandas capaz de tirar do sério até mesmo a pessoa típica mais equilibrada do mundo.

  1. Tentei pelo site do Detran, refazer o processo de solicitação de renovação da CNH. Sem sucesso, entretanto, pois essa não é uma opção válida e possível para o Detran,
  2. Tentei agendar uma ida ao atendimento presencial no Posto Uai/BH. Mais uma vez não foi possível. Isso porque exigiam o assunto. Ao informar, consideravam que eu já havia dado início ao processo.
  3. Tentei, então, gerar o boleto para o pagamento da taxa. Não foi possível pois consideravam que eu já havia gerado um, quando iniciei o processo. Se não gerei, pelo menos devia ter gerado. Problema meu.
  4. Dessa forma, fui com a cara e a coragem ao Posto de Atendimento presencial com todo o ônus que isso significa para mim: gatilho de crise pelo receio de um atendimento de baixa qualidade, exposição ao excesso de informações sensoriais, dificuldade em comunicar minhas necessidades, gasto com uber, já que não me localizo bem dirigindo e nem de ônibus. Felizmente, fui bem atendida e consegui gerar e pagar o boleto da taxa. Mas não consegui mudar o local de exame,
  5. Mais ligações e marquei a data do exame médico, (ansiedade já estava a mil),
  6. Meu exame oftalmológico estava em dia, os óculos também. Portanto, fui ao local tranquila quanto a isso. Mas…
  7. Me desloquei de uber, 30 reais pela distância e horário. 60 reais, ida e volta. Taxa devidamente paga:120 reais. No local: Mais 200 reais pelo exame.

O exame

Preenchi o formulário e, pela primeira vez citei que era autista. A médica me chamou. Mediu minha pressão: 140×100. Não adiantaria eu dizer que aquele processo todo, me deixou tensa. Ela iria me cobrar o equilíbrio necessário ao motorista. Sorri sem graça e deixei para lá.

A médica estava toda de preto e o bom dia me deixou perceber o sotaque libanês. Até aí, tudo bem. Ela colocou uma placa atrás de mim para que fosse refletida no espelho à minha frente. Não gostei de ler pelo espelho mas entendi que foi preciso para dobrar a distância entre mim e as letras que eu deveria ler.

Isso mesmo. Deveria. Eu não consegui discernir que letras eram. Isso nunca me aconteceu. Quando não lia a letra perfeitamente, dava para perceber qual era, em todos os exames realizados até então. Um H poderia virar um E, um C poderia parecer um O. Mas agora não. Eu não conseguia ler. E a médica? Só dizia “Leia. Você tem de ler.”

Caraca. Eu sabia que tinha de ler. Mas agora minha preocupação era com não enxergar a linha que eu sabia que deveria enxergar com os meus óculos. Disse alto: “O que está acontecendo comigo? No dia a dia, nunca percebi essa dificuldade. Leio todas as placas de trânsito.” A médica? Nem aí. Aliás, a expressão dela não mudou e nem disse nada.

Autoridade, não. Falta de empatia, sim.

Eu desisti e me sentei aflita, aturdida e acuada. A médica preencheu um pedido de laudo ao meu oftalmologista e repetiu fria e desdenhosa. “Aqui você tem de ler.” Eu quis saber: “E se estiver tudo bem, já que minha consulta está em dia?” E ela: “Aqui você tem de ler. Faz óculos novos e só volte aqui com eles.” Saí, me sentindo um lixo. E mais ainda: estava completamente humilhada. Fui o mais rápido que consegui à minha médica que constatou e registrou o seguinte, em um laudo:

Se minha médica, com ampla experiência, atesta que posso, eu posso! Mas o Detran pode entender que não. Aliás, o Detran não. O médico que está lá. Com o laudo nas mãos, lá fui eu ao Setor de Julgamento do Detran, ou seja, à Clínica conveniada.

Mais do mesmo: Abuso de autoridade

Minha carteira de motorista já estava vencida à essa altura de meu calvário. Ainda assim, 30 reais depois de uber, lá estava eu para enfrentar o tal exame. De novo. Dessa vez, um médico calvo e de cabelos (os que restavam) brancos. Um senhor, aliás, como eu. Eu entrara recentemente na casa dos sessenta e ele já estava lá havia mais tempo.

Mediu minha pressão: 140×100. A ladainha que, em geral, acompanha esse resultado, veio: “Toma remédio para controlar a pressão?” E eu: “Sim.” Ele: “Tomou hoje?” Eu: “Tomei.” Momento em que me olhou de relance, como a confirmar se era o caso, já que viu em minha ficha que eu acabara de completar 60 anos. Suspirei um pouco mais aliviada pois me vestira de forma despojada, mas no estilo ‘jovem senhora.’ Afinal, da última vez, a saia indiana, camiseta preta, colares dourados, brincos grandes poderiam ter passado a ideia de ‘terceira idade riponga’. Ri discretamente, ao pensar assim.

O médico continuou implacável: “Que outras medicações a senhora toma?” Minhas deusas dos autistas e dos tdahs, é agora que o bicho pega. Respirei fundo e forneci a lista. Afinal, o que ele poderia dizer se estou devidamente, medic ada. Assim, me empoderei da sensação

de ser cuidadosa com minha saúde. Fechei com a medicação para colesterol elevado. E daí? Até criança pode ter colesterol elevado hoje em dia. Minha alimentação não é tão ruim, mas o estresse, ah, o estresse!

Afastei o estresse de meus pensamentos. Eu não queria que ele me considerasse estressada demais para dirigir. Embora que atire a primeira pedra quem não esteja assim…

A saga continua

“Selma”, disse o médico demonstrando que dominava o protocolo, “seus óculos são novos?” E eu: “Sim.” Até explicar que a médica disse que eu deveria mantê-los, pois o grau era o mesmo, preferi ser monossilábica. “Para longe? Bifocal, multifocal?” O tom de voz e a forma inquisitiva me fizeram gelar. Respondi sem pensar: “Para longe.” Por um segundo, esqueci o que era bifocal, multifocal e agora já era! Ele insistiu: “Tem certeza?” Perguntou tirando os próprios óculos do rosto e brincando com eles entre os dedos. Respondi intimidada: “Sim.” “Tem mesmo?” Parecia gritar. Pensei no que dizia minha querida avó: “Agora, seja tudo para uma banda só.” Respondi: “Tenho.”

A voz do médico ressoou determinada a não me dar trégua: “Saiba que a primeira coisa que precisamos, é conhecer a ferramenta que temos para enxergar.” Tive vontade de dizer: “Senhor, sim senhor.” Não me atrevi e meneei a cabeça concordando. “Que diacho, vamos acabar logo com essa tortura”, pensei.

O comando veio seco: “leia as letras que aparecem no aparelho.” “Ufa, me livrei do espelho.” com as letras refletidas.

Triste ilusão, não consegui ler. Mas chutei alguma coisa. Sabia que vinha chumbo grosso. “A senhora tem de ler.” Me perdoem, mas puta merda! Nem quando estava sendo alfabetizada ouvi tanto “Tem de ler, tem de ler, tem de ler.” Pombas, eu sabia disso. Fiz a lição de casa, estava com meus exames e óculos em dia. Não sentia dificuldade em dirigir de dia ou à noite. Mas ali, não conseguia ler e não entendia o motivo disso.

A coisa toda piorou

Demonstrando certa impaciência revestida de “vou tentar te ajudar”, o médico disse: “A senhora tem de ler, olhe mais de perto, mais de longe, mas tem de ler. Será que ele não percebeu que essa parte eu já havia entendido? Tentei contemporizar: “meu médico me disse que minha visão oscila sob estresse. Ah, para quê. O homenzinho quase teve um infarto. Respirou fundo e disse, então: “Saia já desses médicos. Não volte. Não existe isso. O que impede a pessoa de enxergar são as doenças nos olhos. Sei!!! Eu já havia estudado esse assunto.

Por isso, tentei argumentar com minhas experiências em momentos críticos. O médico só fez ficar ainda mais nervoso. Calei. E prosseguimos com o exame: “H, C…” “Que H o quê. Nada de H. A senhora tem de ler. São 5 letras, apenas.” Respirei, orei mentalmente, e lembrei que minha mãe ficara orando em casa Também. “A…” E ele: “isso, isso!” Naquela hora percebi que, do jeito dele, ele começou até a torcer por mim. Que ironia. Qual jogadora quer decepcionar a torcida? Prossegui: “A…” E ele: “essa você já acertou.” Continuei: “C, P, Z e Y”. Sei lá se estava certo, mas falei rapidamente e pronto.

Não acabou ainda

Já estava correndo para o abraço quando ele disse: “agora só com o olho esquerdo.” Como assim? Eu dirijo utilizando meus dois olhos. Um equilibra o outro. Isso não conta? Já estava exausta, a ponto de mandar o doutor encerrar por aquele dia, mas prossegui. Li tudo. Depois com o olho direito. Sei lá se acertei todas, uma ou três letras. Sei que ele escreveu na papelada, me mandou ir ao atendimento lá de fora.

Mas antes que eu saísse disse: “A senhora tem 6 doenças nos olhos.” E apontou o laudo da médica que trazia miopia, astigmatismo, presbiopia, início de catarata no olho direito, não operável. Entretanto ele acrescentou a sexta doença (para ele, pois eu contei 5): E já tem 60 anos” Que abuso de autoridade! Que deselegância.

Nem quando eu tinha muito mais miopia e astigmatismo, já operados há anos, eu ouvi algo parecido. Agora que tinha muito menos correção visual: 1,75 de miopia, 0,75 de astigmatismo e 0,5 de presbiopia (a já conhecida vista cansada’), eu tinha de ouvir aquilo? Mas agora eu tenho 60 anos. Sou velha. E pensando que já perdi a memória, a maioria das pessoas me lembra desse fato a todo instante. “Você entrou para a casa dos idosos.” Ainda bem que me avisaram. Senão como eu ia saber? (Risos). Afinal, eu não senti nenhum ‘sintoma’ especial. Era só mais um ano de vida, com os desafios da nova etapa. Perguntei, ignorando o etarismo: “Eu vou ficar cega?” E ele: “Quem vai saber…” Agradeci (por nada) e sai da sala.

O atendente não entendeu nada

Entreguei a papelada ao atendente que me orientou: “Dentro de 8 dias você receberá sua carteira em casa. E eu: “Mas ele não disse que eu fui aprovada.” Ele só falou das doenças em meus olhos. O atendente gritou: “Dr., a Selma foi aprovada?” E ele: “Sim. Foi sim” E já no corredor para que eu o ouvisse e visse: “Além da recomendação de ir ao oftalmologista de seis em seis meses.” Ah, pois sim…

Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora no projeto multimídia Mundo Autista D&I, escritora e radialista. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial (IEC/MG), ela atua como editora no site O Mundo Autista (Portal UAI) e é articulista na Revista Autismo (Canal Autismo). Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+. Prêmio Microinfluenciadores Digitais 2023, na categoria PcD. É membro da UNESCOSOST movimento de sustentabilidade Criativa, desde 2022.

Mundo Autista

Ver Comentários

  • Selma, impossível não te apoiar na sua nobre jornada, não sei se foi a intenção mas adorei o humor implícito nos relatos. Creio que de alguma forma você sabe lidar com as "constrangedoras" situações.
    OBS: não se esqueça de ir a Dr Maria Célia de 6 em 6 meses.

  • Oi Selma,
    Excelente o seu desabafo.
    Realmente, quando passamos dos 40 anos parece não somos aptos para continuar vivendo, porém para a aposentadoria somos crianças ainda.
    Também passei por essa fase de renovação da carteira recentemente e acho um absurdo você não poder escolher onde quer fazer o seu exame.
    Isso é abuso de autoridade!!!
    Grande Abraço.

    Roberto.

  • Que linda você, Selma!! Descobri seu site por acaso, após ver o título da postagem no portal Estado de Minas. Desculpe, mas eu ri muito na parte do "dirijo com os dois olhos".
    Que texto!! Sei exatamente o que você passou, pois sou deficiente auditiva (e autista também), e passei por uma tortura parecida. Fico muito feliz com sua CNH liberada! Já não precisa mais ler tanto rs

  • Estimada Selma, ótimo texto onde você expõe com leveza todos os seus sentimentos diante de dois elementos que mais causa stress, indignação e mais um tanto de adjetivos negativos: Detran e médico de Detran... Fiquei indignado aqui por você por que ter que passar por esse verdadeiro corredor de tortura. E olha, que somos obrigados a isso! Fica aqui a minha solidariedade...

  • Oi Selma!
    Meus parabéns pela MARAVILHOSA matéria.
    Tenho sessenta e seis anos, renovarei a minha CNH essa semana e CONCORDO com você em gênero e grau.

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