A transição social de minha filha autista começou no final de 2020, em plena pandemia do Coronavírus. Apoiei a decisão depois de perceber que ela já havia ponderado sobre as consequências dessa atitude. Publicamos uma foto na rede. Foi a forma que encontramos, naquele momento, de dar a notícia para a família e a nossos seguidores. Entre espanto, vislumbres de acolhimento, estranheza e manifestações veladas fomos construindo um trabalho de formiguinha para informar as pessoas.
Afinal, o que para elas era algo novo, diferente e inusitado, para mim e minha menina era algo que nos acompanhava desde o nascimento dela. Todos poderiam ter a sua própria opinião, mas que não desrespeitassem minha menina. Até ali, meu sofrimento solitário e gigante, compreendia toda a inadequação de minha filha. E para quê? Ela era o que era e já dava provas com atitudes, estudos e ações de que era um grande valor para a sociedade.
A transição social de minha filha autista
Eu já disse neste espaço e repito que, no TEA – Transtorno do Espectro do Autismo, há a possibilidade de 7,59% a mais de o autista apresentar a disforia do que acontece entre as pessoas típicas. Entretanto, poucas pessoas, inclusive profissionais, tem conhecimento sobre esse dado. Tanto que, anos antes de 2020, eu e Sophia fomos vítimas dos ‘achares’ e não ‘saberes’ de profissionais desatualizados e discriminadores. O que resultou, inclusive, em estresse pós-traumático em minha filha adolescente.
Ainda a transição social de minha filha autista
Minha vivência desse período me fez ver que o ditado popular ‘enquanto os cães ladram, a carruagem passa, é super certo’. Mesmo que alguns familiares não expressassem diante de nós o que pensavam, seus olhares de reprovação denunciavam suas almas. Eu e minha menina não tínhamos tempo a perder. Era preciso seguir a vida, com foco, fé e dignidade.
Entretanto, uma das melhores coisas do cérebro neurodivergente, que não cedeu à contaminação do meio, é estudar sobre o que não entende e ter facilidade de aprender coisas que façam sentido quando esclarecidas. Não havia sentido em me curvar ao medo, ao vitimismo, diante de algo que é real. E imutável.
Com a questão da transgeneridade, não foi diferente. Eu enxergava o ser humano maravilhoso que minha filha é. Desde criança, eu percebia que a relação dela com o mundo, era com a identidade feminina. Afinal, sou mulher. Isso era claro para mim. Mas não para os outros que levavam para o lado da sexualidade. Logo, minha filha seria homossexual. Não era tão simples assim. O ser humano é rico e complexo.
Resumo da transição social de minha filha
Na adolescência, ao sentir atração pelos meninos, foi o que bastou para o rótulo de homossexual. Tudo bem se fosse. Mas eu sabia que ia além. Mais uma vez me debrucei sobre o estudo desse assunto. De uma maneira genérica aprendi que nosso cérebro nos diz sobre nosso gênero, o coração nos diz sobre nosso afeto/amor por pessoas, homens, mulheres, pessoas cis ou não. E nosso órgão genital é o que nos diz sobre nossa sexualidade.
Por isso, existem mulheres trans que não tem problema com a genitália masculina. Não é o que acontece com a Sophia. Ela tem o que antes era chamado de disforia de gênero e hoje, com o CID 11, passou a ser chamado de incongruência de gênero.
Pobres homens, pobre Freud. Já pensou descobrir que a masculinidade não reside no tão ovacionado símbolo fálico masculino? Há muito que se estudar para conhecer a complexidade do ser humano. Mas é no paradoxo de sua complexidade e simplicidade que reside toda a sua riqueza.
Portanto, acompanhar essas duas fases foi exercitar as características maternas: acolhimento, parceria, cumplicidade, descobertas conjuntas, diálogo e estudo constante. Sem julgamento. Separando o que é de minha filha, o que é meu e o que é nosso.
Transição social e cobranças
Me cobraram, “eu não sou como você, que aceitou tudo fácil demais.” Quanta ingenuidade. De minha aceitação sei eu. Não foi fácil lembrar de quando eu vi ‘o sexo’ no ultrassom pela primeira vez, de todas as fotos e vídeos com o meu, até então, filho. Mas isso era comigo. Não tem a ver com ela. Não posso jogar mais esse peso sobre ela. Mirei no ser humano lindo, acolhi a mulher que sei que sempre esteve nela. Não me permiti viver na lamentação. Lamentação apaga a boa sorte. E o vitimismo nos paralisa. Eu? Eu sigo com Sophia construindo uma nova história. De amor e de esperança. E já com muitas vitórias a computar.
Quando eu e minha filha conversamos mais seriamente sobre o assunto, ela estava com quase 15 anos. Ela já queria tomar hormônios e iniciar o processo de transição social. Expliquei que éramos leigas sobre o assunto, que eu estaria ao lado dela em tudo, mas que precisaríamos de profissionais capacitados na área da saúde para nos orientar. Foi uma grande frustração! O que encontramos foram profissionais cheios de achismos embasados em suas próprias crenças e não em estudos científicos. Eles acreditavam que tudo estava relacionado ao autismo. Foi dureza. Procuramos orientação e conhecimento científico junto a esses profissionais de saúde e encontramos preconceito, crenças, achismos e até mesmo negligência. Tudo isso gerou um grave quadro de estresse pós-traumático em minha filha.
Assim chegamos a 2020, durante a pandemia
Cuidamos disso e, em 2020, com a pandemia, minha menina chegou ao limite. Apoiei a decisão dela de iniciar imediatamente a transição social. Ela não me surpreendeu pois eu criei uma filha corajosa, que soubesse ser a senhora de sua mente. Pesquisamos e chegamos a um psiquiatra e um endócrino que a acompanham até hoje, mesmo depois da cirurgia de redesignação sexual. São profissionais do Hospital Eduardo de Menezes, do SUS. Esse hospital possui um laboratório para acompanhamento de pessoas trans.
Um ano e oito meses depois, a cirurgia de redesignação
Para quem decide fazer a cirurgia pela rede particular, basta esperar um ano. Assim, em outubro de 2021, minha filha se encarregou de cumprir os trâmites exigidos: laudos do psiquiatra e da psicóloga e a escolha de com quem fazer. Ela pesquisou e descobriu um centro de referência em Blumenau – a Transgender Center Brazil. Checou também na Tailândia, uma equipe com anos de atuação na área. Mas, embora um pouco mais em conta, mesmo sendo fora do país, sentimos confiança nos profissionais aqui, do Brasil. Constatamos, um pouco mais tarde que, de fato, foi nossa melhor escolha.
Entretanto, confesso que a negociação de preço, com a área administrativa e de logística, foi um desafio. Não houve margem para negociação de preço mais de acordo com nossa realidade. Desse modo, juntei todas as economias de anos de trabalho e, em fevereiro de 2022, pagamos os médicos que fariam a cirurgia. Mas, por causa da do agendamento, a cirurgia só aconteceria no final do mês de junho. Então, o restante da conta poderia ser quitado neste momento. O agendamento nos garantia o congelamento desse montante. Um valor para o qual, eu teria de recorrer a empréstimos.
Contudo, sabia o quanto essa cirurgia era importante para minha menina. Estava disposta a acabar de vez com todo aquele sofrimento que envolve a incongruência de gênero.
Como escreveu Barão Vermelho:
“Por você, eu dançaria tango no teto, eu limparia os trilhos do metrô. Eu iria a pé do Rio a Salvador.”
A equipe responsável pela transição social de minha filha autista
Dr. Martins e Dr. Cláudio compõem a equipe, além da querida enfermeira e instrumentadora Claudete Jocken. Eles são heróis visionários, talentosos, competentes e entusiasmados. Ainda assim, eu rogo aos céus, que os preços deles se mantenham acessíveis a tanta família que precisa, como eu, dar oportunidade para que seu filhe encontre a plenitude de sua própria identidade e, possa assim, devolver à sociedade, todo o talento dessa vida singular.
Acompanhe mais dessa prosa em meu próximo post. Até!
Selma Sueli Silva é graduada em Jornalismo e Relações Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, além de Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial. Atuou, como produtora e apresentadora, nas rádios Itatiaia (de 2001 a 2015), Inconfidência, Autêntica Educativa e Super. Foi assessora chefe do INSS/MG, de 1993 a 2001. É autora de cinco livros. Foi diagnosticada com TEA (Transtorno do Espectro Autista) em 2016. Mantém o site “O Mundo Autista” no Portal UAI e o canal do YouTube “Mundo Autista” desde 2015.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.