Selma e Sophia Mendonça no lançamento do livro Metamorfoses.
Um arrepio me percorre pela espinha quando me lembro da terapia que escolhi para minha filha autista. Já se passaram 14 anos, desde quando a terapia do bem se deu mal. Às vezes, parece que luto contra a maré, na relação com minha filha. Dessa forma, posso quase ouvir uma voz em meu cérebro. Ela vem toda vez que busco uma solução para alguma aflição dela. Essa busca é algo automático para meu cérebro neurodivergente. Todo problema precisa de uma solução. Mas a vozinha me lembra: “Você tem o direito de ficar calada. Tudo o que você disser será usado contra você.”
Quando recebi o diagnóstico de minha menina, em 2008, só o consegui por causa do único psiquiatra que entendia do assunto. Aliás, foi ele que me indicou a psicóloga para o acompanhamento. Estava tranquila, pois eram os melhores, à época. Hoje sei que, para ser o melhor, é preciso de uma série de características. Exemplos de algumas:
Então, como disse à época, não foi possível escolher outros profissionais. Havia poucos deles voltados ao Transtorno do Espectro do Autismo – TEA. Entretanto, me considerava com boa sorte. Escolhi a terapia do bem e não me daria mal. Puro engano. Quando o assunto gênero e sexualidade vieram à tona, na adolescência, tudo mudou. Esses dois conceitos foram confundidos pelos dois profissionais. Eles acreditavam que eram palavras sinônimas. Mas não eram.
Sexualidade é a forma como uma pessoa vivencia e expressa a atração sexual por outras pessoas. É uma parte normal da experiência humana.
Transgeneridade é a identidade de gênero de uma pessoa que difere do sexo que atribuído a ela ao nascer. O termo é abrangente e pode incluir pessoas não-binárias.
Essa confusão resultou em traumas que atormentam minha filha até hoje.
Assim, minha filha, ainda adolescente, me cobrava pela atuação d o psiquiatra e da psicóloga. Eles não a entendiam sobre a não identificação com o gênero designado no nascimento.
Foi quando, inclusive, o psiquiatra sugeriu um psicólogo homem. Mas um trauma para quem se identificava como mulher. Além disso, eles desmereciam o que ela falava, dando peso menor a seus sentimentos.Passei esses anos todos defendendo a psicóloga. Para tanto, expliquei a minha filha que naquela época, o assunto era pouco conhecido. Mas minha filha retrucava que esses profissionais deviam ter estudado mais ou admitido a falta de preparo técnico. Ou, simplesmente, não deviam contestar o que ela afirmava categoricamente sobre si.
Confesso que, por muito tempo, a culpa me envolveu. Eu deveria ter virado céus e terras à procura de profissionais mais preparados? Foi tão difícil chegar aqueles dois e minhas buscas, pelo google, não me ofereceram as respostas necessárias. Repetia sempre para mim, para me convencer: “Você fez o melhor à época, com as ferramentas que tinha.”
Embora isso fosse verdade, a terapia do bem se deu mal. E todas as minhas escolhas e tentativas de justificar, inclusive os profissionais, se viraram contra mim. Com relação ao psiquiatra, todo senhor de si e de seus saberes e achares, tudo bem. Mas o desejo de fazer mais e melhor, sempre moveu a psicóloga. Infelizmente, isso não foi o suficiente para minha menina.
Nesses 14 anos, o assunto retorna nos momentos mais imprevisíveis. Sinto desconforto porque minha filha é uma grande mulher. Além disso, o tema e o que esses profissionais fizeram faz parte do passado. Hoje, na hora do almoço, aconteceu de novo. Reagi com impaciência. “Saco, isso aconteceu há 14 anos”, argumentei com ela. E disse de meu afeto e gratidão com relação à psicóloga.
Entretanto, somente agora, 14 anos depois, ela foi super clara comigo. “Você me fez sentir culpada em relação à minha psicóloga. Penso que eu não devia me sentir assim. Gosto dela e sou grata também. O que não tira do meu peito, não tira do meu ser, a dor e a mágoa que sinto quando me lembro da invalidação, da postergação para enfrentar algo que para mim era a minha própria vida. O psiquiatra chegou a gargalhar em sua cara. São atitudes que me marcaram e que ainda me consomem.” Gelei. Ter empatia é mesmo complicado. Minha filha não vive do passado. É o passado que se transformou em marcas em sua alma.
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Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora no projeto multimídia Mundo Autista D&I, escritora e radialista. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial (IEC/MG), ela atua como editora no site O Mundo Autista (Portal UAI) e é articulista na Revista Autismo (Canal Autismo). Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+. Prêmio Microinfluenciadores Digitais 2023, na categoria PcD. É membro da UNESCOSOST movimento de sustentabilidade Criativa, desde 2022.
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