A rigidez cerebral da pessoa autista incomoda. Rigidez cerebral. Cérebro rígido. O que é isso, afinal? Depois de meu diagnóstico na vida adulta, essa foi a primeira grande batalha que enfrentei. O que seria a rigidez cerebral que, conforme os especialistas afirmam, todo autista tem? Logo eu que sempre ‘treinei’ a flexibilidade. O mercado de trabalho me mostrou que isso era importante. Aliás, a sociedade e o mercado de trabalho me cobravam essa tal flexibilidade desde sempre.
Mas o pior é que sem ela, diziam, era impossível ser criativo. Enxergar outras perspectivas. Assim, o peso do rótulo já me me envergava, literalmente. Eu andava com os ombros caídos, tensionados para a frente. Ou seja, isso me garantia não provocar olhares para mim e meus seios fartos e, também, espelhavam esse peso do rótulo de ser metódica e perfeccionista. Tudo isso acabava com minha autoestima.
Eu já estava cansada de tudo e resolvi copiar comportamentos para ser flexível. Não ia me pautar somente pelo que era dito. Por exemplo, no trabalho diziam: “Faça essa tarefa dessa e dessa maneira.” Se antes eu me atinha ao que foi dito, agora, eu pensava também nas possibilidades que podiam me ajudar na tarefa e que não foram ditas. Esse exercício me levava a pensar, avaliar e saber que deveria ousar. Isso era ser criativo, pensava eu.
Num primeiro momento, minha ousadia parecia infantil e limitada diante de coisas que eram propostas pelos colegas e que eu só então, considerava óbvias. Foi um tempo ruim. Passei a desacreditar de mim. Cumpria todas as tarefas, com excelência, até. Mas eu queria mais, queria descobrir a tal criatividade. Deixá-la fluir. Ser tecnicamente perfeita era pouco para mim. Sempre acreditei que cada um de nós temos um brilho próprio. No jornalismo, esse brilho era chamado de estilo. Eu precisava descobrir o meu.
Ao olhar para trás, percebo que essa foi sempre a minha rigidez cerebral. Pediam, eu fazia. Dentro das regras. E quando ousava, também enquadrava minha ousadia. Porém… e sempre há um porém, vamos envelhecendo, colhendo mais experiência, percebendo o que nos deixa à vontade, feliz – que é nosso! E o que nos incomoda e escraviza – que normalmente é do outro. Dessa forma, passei a pensar menos e me entregar ao meu trabalho de maneira prazerosa.
Talvez tenha sido isso que me fez sair da área de exatas, à época, e migrar para a área das ciências sociais e humanas. Eu precisava ser feliz, me sentir à vontade. Mas sem entender como a sociedade funcionava, estava sendo quase impossível.
Aos poucos, fui ‘pegando o jeito’ e tomando gosto. Caraca! Eu gostava do que fazia. E muito!!! Só não gostava do quanto recebia por isso. Até me aposentar, em 2019, nunca gostei. Porém, (olha ele aí de novo), resolvi fazer a transição de carreira e, hoje, como criadora de conteúdo, ‘nano influencer’, pude encontrar valores que nunca foram vistos assim, durante minha construção profissional. Querem exemplos?
Vou ficar por aqui, senão não termino este texto hoje. Certamente que tem muiiiiito mais. São 36 anos de produção de saberes, muito bem aproveitados, para meu deleite.
É muito bom olhar para trás e perceber que construí estratégias que me tornaram resiliente, ousada, criativa, flexível, leve, participativa, aberta a novas possibilidades e outras ‘skills’ que amo. Eu venci a rigidez cerebral da pessoa autista. Porém… (tem jeito, não) poderia ter sido com menos exaustão e esforço para ter me dado tempo para investir, de maneira simultânea, nas minhas relações familiares.
A rigidez pautou minhas ações em família, nos relacionamentos amorosos, até a descoberta de meu diagnóstico. De lá para cá, já abri mão de muitas certezas absolutas. Aliás, que de absolutas não tinham nada e ainda ocupavam espaço para eu receber as tais novas possibilidades.
Passei a levantar, SEMPRE, a hipótese de ‘e se eu estiver errada?’ para avaliar um pouco mais e exercitar a empatia para essas construções. Passei a ouvir mais. A pessoa autista tende a falar, falar e falar. Seus pensares, falares e hiperfocos são sua força motriz. Porém… percebi que ouvir me trazia novos e interessantes dados para a formação de um pensamento. Passei a ser cuidadosa para referenciar minhas afirmativas. Assim, evitava uma regra formada por meu cérebro rígido, diante de uma experiência particular.
Eu sei que vocês devem estar considerando que eu descobri o óbvio. Mas, acreditem em mim. Para o autista nada é óbvio. Tudo se constrói pelo aprendizado de vivências e situações que fazem sentido para nosso cérebro neurodivergente. Afinal, quebrar a rigidez cerebral exige muiiiito da gente. Mas a colheita é, via de regra, muito produtiva!
Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora. É articulista na Revista Autismo (Canal Autismo) e Conselheira da Unesco Sost Transcriativa. Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+.
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Obrigada por compartilhar conosco seu aprendizado, expondo(e se expondo) de maneira clara e sensível.
Interessante, Consuelo, a sua observação. Eu ficava na dúvida em me expor. Mas é tão bom esse retorno que vale muito. Bjim.
❤️ Este texto me fortalece. Ainda há esperança para mim.
Ariene, que delícia de retorno!!! Me incentiva a escrever cada vez mais!!!
Bjo
Nossa, que texto incrível! Foi uma conversa agradável e muito esclarecedora, desconfio que boa parte tudoo que faço e como faço, esteja relacionado a rigidez cerebral!
Fernanda, é muito louco isso, não é mesmo?
Bjo, Selma
Olá muito interessante, me vi nesse texto, não sei se sou autista, não tenho o diagnóstico, estou com 58 anos. Mas estou interessada nesse tipo de conteúdo devido ao meu filho, que estamos buscando o diagnóstico.
Olá, Você pode ser ou só ter traços. De qq maneira, vale a pena vc checar, né? E boa sorte na busca de diagnóstico para seu filho. Bjo.
Obrigado por compartilhar suas experiências. Me identifiquei de imediato.