Uma crônica de Sophia Mendonça sobre a garota autista na Bolha, inspirada em Wicked e nas próprias vivências como criadora.
A mentira mais bonita que me contaram — e na qual eu acreditei por muito tempo — era a de que, se eu me doasse inteira, receberia apenas amor em troca. Dessa forma, a minha bolha era feita de glória e gratidão. No entanto, as paredes foram construídas por cobranças.
Eu fechei os olhos para a verdade de que muitas pessoas não queriam seguir quem eu era; queriam seguir quem elas decidiram que eu deveria ser. Portanto, queriam me controlar. Assim, a regra implícita era clara: eu devia servir, educar e inspirar. E quando pisavam em mim, quando exigiam tudo e não ofereciam nada, o script exigia que eu sorrisse. Que eu agradecesse. Sempre. Sem falhar uma única vez, porque isso poderia trazer consequências dolorosas e irreversíveis, como trouxe em alguns relacionamentos. Então, a vida bonita era um cativeiro onde a gratidão era uma via de mão única.
Eu ajudei outras pessoas a tecer as próprias histórias mágicas, enquanto a minha realidade era drenada. Eu achava, numa ilusão cruel, que precisava do outro para me validar. Portanto, pensava que eu só teria uma vida digna se o público aplaudisse. Assim, eu adornei-me com as expectativas deles. Isso porque achava que elas eram joias, quando na verdade eram correntes.
Ainda assim, preciso ser justa com a nossa história. Carrego uma gratidão imensa pelas transformações que eu e meus seguidores construímos em conjunto na comunidade do autismo. Valeu a pena deixar um legado com a Autistas Brasil, e sinto que, hoje, são eles que me representam. Além disso, quero ponderar que fui feliz; a dedicação à comunidade do autismo foi uma parte importante da minha trajetória e que me mudou muito, para melhor. O que eu e minha mãe construímos, no diálogo com vários setores da comunidade, foi real. Mas, o custo para mantê-lo tornou-se insustentável.
A “Garota na Bolha” flutuava, sim, mas não por leveza. Flutuava porque não tinha permissão para tocar o chão, para ter peso, para ter dias ruins, para dizer “não”.
Mas a exaustão é a verdade que não se pode calar. Ela se infiltrou sob a superfície brilhante do ativismo digital. Percebi que estava entregando minha alma em troca de migalhas. A bolha não me protegia do mundo; ela me impedia de viver o meu mundo.
Agora que a bolha estourou — ou melhor, agora que eu tive a coragem de estourá-la —, a pergunta que me assombrava se tornou a minha maior libertação: Quem sou eu agora?
Eu sou a mulher que não precisa mais pedir licença para existir. Se eu não estou mais servindo às demandas infinitas de seguidores na internet, o que sobra? Sobra o que eu amo. Também sobra a minha essência. Além disso, sobra o meu hiperfoco vibrante em romances, onde eu posso criar finais felizes que não dependem de likes. E sobra a minha mente analítica devorando críticas de cinema. Com isso, posso dissecar narrativas porque eu amo a arte, não porque preciso provar ponto de vista e que tudo que investi em estudos valeu a pena.
Já passou da hora dessa bolha estourar. E o barulho do estouro não é triste; é o som de correntes se quebrando.
Descobri que não preciso de adornos para ser feliz. Além disso, não preciso da validação de quem só quer consumir minha energia para me sentir digna. Também não preciso ser a “mártir da causa” para ser produtiva. Na realidade, eu posso apenas ser. Dessa forma, posso escrever meus livros, analisar meus filmes, viver minha vida com a dignidade de quem finalmente entendeu que o único aplauso que importa é o da própria consciência. Portanto, a bolha se foi. E pela primeira vez, o ar que eu respiro é meu.
Sophia Mendonça é jornalista, professora universitária e escritora. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UFPel). Idealizadora da mentoria “Conexão Raiz”. Ela também ministrou aulas de “Tópicos em Produção de Texto: Crítica de Cinema “na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto ao professor Nísio Teixeira. Além disso, Sophia dá aulas de “Literatura Brasileira Contemporânea “na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), com ênfase em neurodiversidade e questões de gênero.
Atualmente, Sophia é youtuber do canal “Mundo Autista”, crítica de cinema no “Portal UAI” e repórter da “Revista Autismo“. Aliás, ela atua como criadora de conteúdo desde 2009, quando estreou como crítica de cinema, colaborando com o site Cineplayers!. Também, é formada nos cursos “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica” (2020) e “A Arte do FIlme” (2018), do professor Pablo Villaça. Além disso, é autora de livros-reportagens como “Neurodivergentes” (2019), “Ikeda” (2020) e “Metamorfoses” (2023). Na ficção, escreveu obras como “Danielle, asperger” (2016) e “A Influenciadora e o Crítico” (2025).
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