Adriana Borges e Sophia Mendonça
O decreto 10.502, que fala sobre o ensino inclusivo no Brasil, levantou um grande debate nas redes sociais nos últimos dias. O “Na real” trouxe a professora Adriana Borges, da UFMG, para falar sobre este delicado assunto e a história do ensino especial no país.
Sophia Mendonça: Hoje eu estou aqui com a Adriana Borges, professora de Políticas Públicas de Educação Especial e Inclusão na Faculdade de Educação da UFMG (FAE-MG). Ela irá nos ajudar a compreender uma questão que tem sido muito discutida há muitas semanas sobre o novo decreto (Decreto 10.502, de 01 de outubro de 2020) da Política Nacional de Educação Especial. Na internet, muitas pessoas se manifestam e tendem a ir para um lado mais emocional. A Adriana é pesquisadora e professora e junto com outros pesquisadores e outras entidades fez um manifesto falando sobre o porquê que esse decreto, essa política acaba se revelando como um retrocesso.
Muita gente tem falado sobre a possibilidade do direito de escolha, outras que seria um retrocesso. O que a literatura científica diz sobre isso, inclusive as sobre as escolas aceitarem as pessoas com deficiência?
Adriana Borges: Esse assunto é bem complexo mesmo. Não é uma coisa fácil de discutir, mas é muito necessário que a gente possa entender o impacto disso na vida e na educação das pessoas com deficiência, dos alunos com deficiência. Eu sou representante do Laboratório de Políticas e Práticas em Educação Especial e Inclusão da Faculdade de Educação (LaPPEEI- FAE). A gente tem uma rede de laboratórios em parceria que é o LaPPEEI, o LEAD (Laboratório de Estudos e Extensão em Autismo e Desenvolvimento), que é da psicologia, o laboratório do departamento de Ciências da Computação (ICEX-UFMG) e o Laboratório de Tecnologia Assistiva (LTA), da Faculdade de Terapia Ocupacional (EEFFTO- UFMG). Fizemos uma leitura, analisamos esse decreto e levantamos alguns pontos em que a gente vê várias inconsistências e inconstitucionalidades nele.
O decreto vai falar muito sobre a questão dos serviços, mas esses serviços todos no viés do modelo médico, o que já está superado. Nosso modelo atual, de acordo com a Convenção da ONU, é o Modelo Social. Então, o principal retrocesso neste decreto é entender a pessoa com deficiência a partir de uma característica individual de saúde, de falta de normalidade, como se faltasse alguma coisa. Não entender que a gente já superou esse modelo médico e que precisamos avançar cada vez mais para o modelo social da deficiência é o grande problema. É preciso entender a relação da deficiência com a interação dessa deficiência com o meio, com as barreiras da sociedade. Quando o meio é acessível, ele permite a plena participação social dessa pessoa com deficiência e essa deficiência tende a praticamente desaparecer. Hoje, as crianças com alguma deficiência têm a possibilidade de estar na escola, de aproveitar esse ambiente escolar sem nenhum problema.
Sophia Mendonça: Seria uma busca para a gente melhorar esse sistema que existe ao invés de retroceder para uma coisa que já não deu certo lá atrás, que é o modelo médico? “Consertar a escola e não a pessoa com deficiência?
Adriana Borges: Exatamente. Na verdade, esse decreto tem criado uma confusão muito grande, inclusive para as famílias de pessoas com deficiência. Isso, porque ele está colocando as coisas de uma forma muito polarizada, como se fosse a escola especial contra as escolas comuns, ou vice-versa. E não se trata disso. A história da adaptação especial, que já tivemos no Brasil, conta para a gente que a educação amparada no modelo médico não deu certo. Por exemplo, a questão das classes especiais, que voltam neste decreto. Essas classes especiais foram super importantes, na década de 1930, em que as crianças ficavam institucionalizadas e muitas delas não tinham acesso a nenhum tipo de escola. Assim, quando as classes especiais entram em cena, há uma possibilidade da entrada de uma criança em um ensino institucional, na década de 30. Mas, qual é a análise que as próprias pessoas que trabalhavam com as classes especiais começaram a fazer? De que não é possível ter uma homogeneização. Você não tem um classe homogênea. Não tem como você colocar em uma classe pessoas mais ou menos iguais, não existe isso. Então, a gente precisa entender a questão da diversidade humana. E é impossível você trabalhar em uma classe só com crianças com deficiência, isso não é bom para essas crianças e nem para as crianças sem deficiência, que perdem a oportunidade de conviver e lidar com a diversidade humana.
Depois disso, as escolas especiais tiveram outro papel a partir da década de 1950. As escolas especiais se fortaleceram no movimento dos familiares. As famílias buscavam uma educação pois percebiam que as classes especiais, eram falhas. Então, quando essas crianças com deficiência vão para as escolas especiais quem ocupa as classes especiais são as crianças vulneráveis, as crianças negras, pobres, da periferia, criando um ambiente dentro da escola, daqueles que têm dificuldade de aprendizagem, os que não conseguem aprender. E quem que não consegue aprender? Aqueles que estão fora do padrão.
Precisamos entender que a escola ainda funciona de uma forma muito padronizada, com um padrão de um aluno que precisa funcionar de uma determinada forma. Mas é a escola que precisa mudar. As escolas especiais tiveram um papel importante? sim, porém, a partir da década de 90, principalmente, a gente tem o novo paradigma da educação inclusiva e da questão da importância do ensino comum, da escola comum, regulas, para as crianças com deficiência. Foi um grande avanço. Crianças com síndrome de down, começaram a chegar na faculdade. E outros jovens com deficiência estão chegando na universidade.
Pensar na educação inclusiva é pensar na educação e nos avanços que a gente teve, por isso, não podemos retroceder. O que acontece com esse decreto é que a gente retrocede. “Ah, mas não vai ter perda de direitos, as famílias vão ser direitos de escolha.”. Não vai, não. A gente sabe disso. Uma aluna minha foi a uma escola, uma escola particular da região da Pampulha para fazer a matrícula da filha. A filha dela não tem deficiência, mas a escola no quadro de avisos da secretaria, tinha o seguinte aviso: “Este estabelecimento de ensino não tem condições materiais e pessoais próprias para prestar e ministrar a educação especial.” Está no artigo 58 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de “acompanhamento e atenção individualizada ao aluno que dele necessitar. Por isso, não se responsabiliza pelo bom resultado pedagógico do discente, cabendo aos pais cuidar do reforço e trabalhos necessários propícios aos aluno”. Olha que absurdo. Quer dizer, isso antes do decreto. Antes do decreto, a gente tem uma escola que vira e fala assim: “Ah, a gente é uma escola, mas um aluno com deficiência, a gente não recebe.”
Sophia Mendonça: Eles falam muito de direito de escolha, mas isso é uma ilusão.
Adriana Borges: É uma ilusão porque se antes do direito de escolha, já estava limitado , o que que avançou? É verdade que se avançou demais na rede pública. O direito de matrícula está garantido na rede pública, mas escolas particulares ainda tem a tendência a negar a matrícula. Então, a gente precisa entender que muito se avançou. E, agora, a gente não pode retroceder.
Sophia Mendonça: Não podemos jogar tudo isso que avançou fora simplesmente porque temos este cenário. Agora é o momento, como eu disse, de aprimorar o que a gente já tem e não jogar fora porque classes segregadas já está no histórico, elas não deram certo. Evidências científicas apontam a questão de que o aluno (a pessoa com deficiência e as pessoas sem deficiência), todos aprendem e que você pontua o aprendizado a longo e médio praz, quando há ação em conjunto.
Adriana Borges: Exatamente. Então, o que ocorre? Havia nesse período aí, esses fortalecimentos, onde as escolas especiais tiveram um papel importante na escolarização das pessoas com deficiência. Pois, havia uma tendência a achar, por exemplo, que as pessoas com deficiência deveriam ser ensinadas só o concreto, que elas não abstraíam. Então, se limitava muito o acesso dessas pessoas, desse alunos com deficiência. Esses alunos não eram exigidos ao máximo de suas potencialidades. E eles têm uma potencialidade grande demais. E essas potencialidades não ficavam reconhecidas. Com a escola inclusiva, a gente tem a possibilidade de reconhecer tais potencialidades. E aí, eu estou dizendo: “É tudo lindo, maravilhoso.”, então? Claro que não, a gente tem muito o que avançar ainda. Agora, o que a gente não pode é retroceder. Então, eu acho que a gente deve melhorar o que está sendo feito. Outra coisa é a gente retroceder, ir para a década de 1930 de novo e recriar a classe especial. Não tem sentido colocar essas crianças à parte, segregadas. É uma espécie de apartheid: você segrega esses meninos e coloca eles em outro lugar, outra classe, outro ambiente e não é assim que as coisas devem caminhar no século XXI. A gente já teve muitos ganhos. Na própria tecnologia assistiva, avançamos demais. Por que que a gente avançou tanto nas tecnologias e nas metodologias? Avançamos nas metodologias de ensino, nos estudos sobre acessibilidade curricular. A gente sabe muito mais hoje sobre como promover acessibilidade curricular, a gente sabe como fazer isso muito mais do que há anos atrás, sabemos como fazer isso em uma escola comum. É preciso fazer isso direito.
Sophia Mendonça: Exatamente, até porque se você for lá na constituição, você percebe que a educação é um direito para todos.
Adriana Borges: Exatamente. É um direito para todos. E outra coisa que é muito contraditória no decreto é que, na hora que ele vai falar o que é educação especial, ele vai dizer que a educação especial é uma modalidade, que é o que vigora desde a política de educação de 2008, que é a Política de Educação Inclusiva. Então, a educação especial é uma modalidade. Sendo uma modalidade de ensino, ele não pode ser um nível de ensino. Você não pode ter uma criança que está dentro de uma escola especial que vai ser formar em um atendimento educacional especial. Uma criança termina o ensino infantil, vai para o fundamental, ensino médio, é isso que é o bacana da escola. Você vai amadurecendo e vai mudando dentro desses conteúdos que são apresentados. E o aluno com deficiência tem direito a isso, ele não pode ficar limitado ao atendimento educacional especializado. “Ah, quer dizer que esse atendimento não é importante?” Claro que é. Ele é importantíssimo para o suporte. Ele vai dar o suporte para que a criança possa se organizar melhor e ter mais ganhos ali no ensino comum.
Sophia Mendonça: É descobrir e otimizar o potencial dela.
Adriana Borges: Exatamente. Agora, você vai substituir? Trocar uma coisa pela outra? Não pode. A gente não pode substituir o ensino comum pela educação especial, porque no próprio decreto, está dizendo que é uma modalidade. Se é uma modalidade, tem que perpassar os níveis: tem que perpassar o ensino fundamental, a educação infantil, o ensino superior, mas não pode substituir. Tem que ir desde a educação básica até a superior, mas não pode ser substituto desses níveis todos.
Sophia Mendonça: Exatamente. E a gente volta lá naquela questão do começo da entrevista em que ainda, há um disfarce de caridade, mas a gente já evoluiu, como uma modelo médico, caritativo. Na realidade, a deficiência ela envolve não só a pessoa com deficiência, mas ela envolve toda uma sociedade, porque todo mundo ganha com a inclusão e aceitação dessas pessoas. Então, a gente tem que ter essa mentalidade.
Adriana Borges: Com certeza. E eu acho que essa é uma preocupação desse decreto é que lá no artigo nono, vai dizer assim: serão definidos critérios de definição de identificação, acolhimento e acompanhamento de educação que não se beneficiam das escolas inclusivas. Agora, quem é que vai definir esses critérios, quem é que vai identificar, dizer quem é que pode estar em uma escola comum e quem não pode estar em escola comum? Então, é isso que você disse: o decreto está vestido de uma boa vontade, como se fosse um direito de escolha. Não é um direito de escolha. É a retirada de direitos. Acho que isso tem que ficar bem claro para as familiares. Esse decreto não dá direito de escolha de jeito nenhum. Ele retira direitos.
Sophia Mendonça: Exatamente. E, às vezes, a gente fica em um afã de procurar respostas rápidas para coisas que são complexas. Tem uma metáfora que fala que os “nossos cílios, apesar de próximos aos olhos, a gente não consegue enxergar. E a lua, embora distante, pode ser vista por todos nós”. Então, a questão, como já foi dito, é um processo complexo, mas é mais simples do que você retroceder. E lembrar sempre que a gente tem que reivindicar nossos direitos.
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