Selma Sueli Silva fala sobre a transição social de Victor Mendonça para Sophia Mendonça.
Meu filho era sensível, coordenação motora prejudicada e, como já disse, muito inteligente. Foi crescendo e era muito elogiado por todos por sua educação e afetividade. Quando tinha uns 8 anos, me disse que queria ser menina. Aos 11 anos, veio o diagnóstico de autismo leve e aos 14 ele retomou a história de ser uma mulher presa em um corpo de homem. Acolhi e passei a estudar sobre o assunto e a conversar com meu psicólogo e a psicóloga de meu filho. Ambos ouviram, disseram que nada poderia ser feito até os 18 anos, mas que até lá iríamos aprender mais sobre esse universo. Contudo, os profissionais me recomendaram a não voltar ao assunto, exceto se o Victor voltasse a falar sobre isso. Porém, o Victor estava confuso e cheio de demandas e, por isso, não manteve o tema em pauta. O tempo passou, ele se apaixonou por um colega, aos 15 anos, um amor platônico e, mais tarde, sinalizou sobre a homossexualidade.
Mas ainda havia algo que não se encaixava: De tempos em tempos, Victor tinha uma grande crise – meltdow* e o assunto disforia de gênero** voltava à tona. Existem estudos em que se registram a transsexualidade em autistas como oito vezes mais comuns que em pessoas típicas. Por isso, me afundei cada vez mais ao estudo do tema. Não queria que meu filho fizesse parte de outra estatística alarmante sobre autistas: em uma pesquisa publicada em 2014 na Autism Research, as autoras Magali Segers e Jennine Rawana, da York University do Canadá, alertaram para o fato de que é importante compreendermos os comportamentos suicidas dos autistas de modo distinto da população típica, pois pessoas com TEA interpretam e reagem a situações sociais e afetivas de forma diferente. Entre os autistas leves, o risco de suicídio é nove vezes maior do que na população sem autismo.
Agora, com a pandemia, meu filho teve tempo de repensar várias questões e consultar profissionais da área de saúde. No fim da semana passada, ele publicou seu primeiro post como Sophia Mendonça. Recebeu vários retornos acolhedores e, recebeu também, ataques recheados de ódio e grosseria.
De acordo com a psicanalista Letícia Lanz, a identificação do gênero é processada no cérebro, a afetividade passa pelo coração e a sexualidade por nossa genitália. É confuso, eu sei. Por isso, eu entendo quem não aceita de jeito algum, esse descortinar de variedades de gêneros mas não entendo o ódio e a grosseria. Não entendo em que algum desses campos (cérebro, coração genitália) interessa a alguém? Isso não é algo que diz respeito à pessoa? Eu jamais cometeria a indelicadeza de dizer a alguém que se apresentasse a mim como mulher, algo do tipo: “Ei, me ajude aí, você é homem.” Entretanto, se me for apresentado um ser humano cruel e sem valores éticos, eu diria: “Peraí, tô fora.”
Victor hoje é Sophia mas continua sendo o mesmo ser humano que brilha em vários aspectos e que se afunda no estudo do mestrado feito na UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais. E continua sendo um pacifista, humanista, com 6 livros publicados e recebe a gratidão de uma turma de seguidores, que se perceberam melhor com a partilha do Mundo Autista. Como eu posso entender que essa redesignação de sexo o torne execrável e menos humano que esse ser que tanto enriquece a vida daqueles que convivem com ele?
Passou da hora de focarmos em criar valores humanos para nossa sociedade e não pasteurizarmos pessoas à imagem e semelhança de nossos preconceitos, intransigências e discriminação.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.