Raquel Guimarães Del Monde, Psiquiatra e Pediatra
Há muitos motivos para que o TEA seja considerado um assunto complicado, difícil de se entender. Não bastassem as confusões históricas em torno de sua definição e as diversas nomenclaturas e sistemas de classificação utilizados ao longo do tempo, a própria heterogeneidade da condição costuma deixar as pessoas atordoadas. Como pode um único diagnóstico englobar indivíduos tão diferentes entre si?
Vamos lá. O TEA, na verdade, é um termo que agrupa diversas condições clínicas, resultantes de configurações neurológicas atípicas. O que estamos chamando de configuração neurológica? É a maneira como os neurônios se organizam, como se conectam para receber, integrar e transmitir informações entre as diversas áreas do cérebro. Nas pessoas autistas, essas configurações podem variar bastante, mas compartilham algumas características. Todas elas apresentam alterações em duas grandes áreas do comportamento humano: I – Comunicação social e II – Interesses e comportamentos restritos e repetitivos.
I – Comunicação Social
Muitas pessoas associam problemas de comunicação a problemas de fala. Entretanto, comunicação é muito mais que linguagem oral: é a base de toda interação humana. Envolve toda troca de mensagens entre duas ou mais pessoas, seja ela verbal (utilizando-se de palavras) ou não verbal (utilizando-se de gestos, expressão corporal, facial, postura e uso de sinais). Sendo uma troca, necessariamente é uma via de mão dupla: envolve sempre um emissor (quem emite a mensagem) e o receptor (quem recebe e interpreta a mensagem). E, para ser efetiva, é preciso que ambos dominem o código que utilizam, para que a mensagem tenha significado mútuo. Quanto maior o conhecimento e a familiaridade do emissor e do receptor com o código utilizado, mais clara e explícita será a mensagem trocada entre eles. Para a maior parte das pessoas, a fala é provavelmente o código de maior familiaridade, portanto o atraso no desenvolvimento da fala ou suas alterações costumam ser os aspectos mais lembrados quando pensamos no autismo. Mas um bom domínio da linguagem oral exige mais do que a produção correta dos sons formando as palavras. Exige também a compreensão dos seus significados, a ordenação delas numa estrutura de frase coerente, a capacidade de adequar a mensagem a uma determinada situação. Além disso, outros aspectos da produção da fala – como a fluência, o tom e a inflexão da voz – podem contribuir para reforçar ou modificar o sentido da mensagem, de forma implícita. São vários níveis de domínio e cada um deles pode estar alterado no autismo, de forma independente. Por isso, as alterações de comunicação que vemos no espectro do autismo podem incluir:
- pessoas que não falam (mas que podem se expressar de outras formas);
- pessoas que falam, mas não conseguem expressar-se com clareza, que apresentam pronúncia pouco inteligível, que fazem uso de vocabulário atípico ou que repetem muitas vezes as próprias falas/falas de outras pessoas ou de filmes, por exemplo;
- pessoas que falam muito bem, até com riqueza de vocabulário e sintaxe perfeita, porém de forma inadequada a determinado contexto ou de forma robotizada, sem inflexão de voz ou com alterações de fluência.
Outra distinção que precisa ser feita é que nem sempre a dificuldade em emitir a mensagem (linguagem expressiva) é acompanhada de dificuldade em recebê-la (linguagem receptiva). Um autista não oralizado pode ter uma ótima compreensão do que ouve ao seu redor, por exemplo. Da mesma forma que na linguagem expressiva, há diferentes níveis de domínio da linguagem receptiva. Desde dificuldades fonológicas, para distinguir bem os sons da linguagem, passando por dificuldade em identificar significados das palavras (uma mesma palavra que tenha significados diferentes), até falta de compreensão dos aspectos mais sofisticados da linguagem (expressões idiomáticas, de duplo sentido, gírias, ironia, sarcasmo), o que acarreta dificuldades nem sempre óbvias para acompanhar uma conversa e para interagir.
Somando-se às alterações da linguagem verbal, as dificuldades na expressão não verbal (“leitura” da postura corporal, mímica facial e gestos, ou seja, a interpretação dos sinais que expressam pensamentos e estados emocionais), podem limitar ainda mais a comunicação como um todo.
II – Interesses e comportamentos restritos e repetitivos
As pessoas no espectro do autismo exibem padrões mais restritos e repetitivos de pensamentos, interesses e comportamentos. Esses padrões podem se manifestar como:
- fixações em determinados assuntos e insistência em ater-se a eles;
- atenção a detalhes em detrimento do todo e dificuldade de generalização do aprendizado;
- apego à rotina, necessidade de manter hábitos rígidos, presença de manias e ritualizações, dificuldade em adaptar-se a mudanças;
- movimentos ou uso de objetos de forma atípica e estereotipada;
- rigidez de pensamento, falta de flexibilidade para aceitar diferentes perspectivas;
- hiper ou hipossensibilidade a aspectos sensoriais do ambiente (luz, barulhos, cheiros, sensações tácteis, texturas, sensibilidade a frio/calor/ dor), resultando em comportamentos de busca ou de fuga peculiares.
Todas essas características podem se manifestar de formas e intensidades diferentes nas pessoas autistas. Além disso, outros fatores individuais como o potencial cognitivo, a história de vida de cada um e a presença ou ausência de comorbidades (condições médicas ou psiquiátricas que podem co-ocorrer com o autismo) têm grande influência no desenvolvimento da pessoa.
Em função de toda essa complexidade, o diagnóstico deve ser embasado numa avaliação clínica cuidadosa e o planejamento terapêutico deve ser individualizado para atender às necessidades de cada um.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.
Parabéns!!! Texto perfeito!!! Sempre comento sobre isso. A comunicação não se reduz ao verbalismo ou não verbalismo. Ameiiii!!!!