Selma Sueli Silva e Victor Mendonça
A neuropsicóloga e professora universitária Dra. Annelise Júlio esclarece questões sobre um tema polêmico: o TDAH como diagnóstico diferencial com o Transtorno do Espectro Autista.
Mundo Autista: Estávamos conversando nos bastidores inclusive sobre a nomenclatura do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Poderia explicar o que é o TDAH?
Dra. Annelise Júlio: Eu vou usar as siglas TDAH e TEA. Os dois são transtornos do neurodesenvolvimento, assim como outros. Vou focar um pouquinho no TDAH, que é um transtorno de comportamento, e a primeira coisa que a gente estava conversando é que eu não gosto muito desse nome. Eu acho que não é muito palpável, porque quando se fala Déficit de Atenção, às vezes se pensa somente no rebaixamento da atenção, mas, na verdade, eu estou falando de um quadro clínico de desregulação do processo atencional. Uma dificuldade, muito maior do que o normal para se engajar, para coisas mais tediosas e difíceis, ou mesmo o outro extremo, que seria o hiperfoco para coisas de que as pessoas gostam.
Quando eu estou fazendo a psicoeducação, explicando para os nossos pacientes quais são as características deles, porque se a gente não se conhece não consegue lidar e o processo de autoconhecimento é tudo, uma das definições de que eu gosto para o TDAH é Miopia para o futuro. O núcleo de dificuldade para o TDAH é a dificuldade na autorregulação do comportamento. O que seria “Miopia para o futuro?”. É uma dificuldade de regular o comportamento no aqui e no agora de maneira a deixar seu futuro mais eficiente, melhor. Eu preciso me engajar e prestar atenção na aula, porque depois isso irá cair na prova. Ou mesmo: eu não posso ficar jogando doze horas de videogame porque isso vai impedir que eu faça minhas atividades.
O TDAH, como transtorno do comportamento, não é uma dificuldade de saber o que fazer, mas de fazer o que tem que ser feito. É por isso que às vezes a terapia é tão frustrante, às vezes eu estou conversando com os meninos e eu não preciso ensinar, eles sabem que têm que estudar. A questão é: eu não consigo estudar. Então as estratégias comportamentais e que atuam no momento que ele precisa estudar costumam ser mais eficientes justamente por isso. Saber o que deve ser feito, ele sabe, o que às vezes é diferente em relação ao TEA; por exemplo, questões sociais. Às vezes ele não sabe o que fazer, por isso tem comportamentos sociais que são mais inadequados.
Já com o TDAH às vezes é mais impulsivo e comete erros sociais porque não conseguiu regular aquele comportamento que ele precisava ter.
Tivemos diagnóstico tardio; portanto, não foram trabalhadas algumas questões que deveriam ter sido trabalhadas, e nós temos um problema grave de disfunção executiva. Qual a diferença?
Para quem não sabe, a função executiva é mais ou menos como o CEO de uma empresa. A função executiva é o CEO da nossa mente, é o que organiza, hierarquiza, planeja. Funções executivas são habilidades cognitivas em geral. Antes de vir para cá, minha filha estava em casa com febre. Vocês sabem o que ela tem? Porque febre pode significar muita coisa. Pode ser consequência de alguma coisa. Pode ser infecção, ou é porque ontem, que foi o primeiro dia na escolinha, ela ficou ansiosa. A mesma coisa, déficit cognitivo é uma dificuldade muito sensível a qualquer alteração no neurodesenvolvimento, mas pouco específica no sentido de se dizer qual é o diagnóstico. É sensível no sentido de que “tem alguma coisa errada”, mas não me direciona a dizer o que está errado.
Por exemplo, febre. É sensível, tem alguma coisa errada com a minha filha. Mas não é específico quando se trata de falar o que está errado com ela.
Disfunção executiva é muito genérica. O diagnóstico me orienta, mas eu não faço intervenções, diagnósticos, eu faço intervenção de indivíduo. Então, por exemplo, uma disfunção executiva no TEA, uma forma de intervir é muito interessante se eu crio protocolos. Para o TDAH, já não é uma estratégia porque ele é péssimo de rotina, péssimo de regras.
Tanto o autista pode mexer na sua bolsa por causa de falta de freio social, quanto o TDAH. Só que quando colocada regra — “Você não pode ter acesso a uma coisa que é privada da pessoa” –, o autista entende. Com o TDAH pode haver dificuldade para se entender essa regra.
Porque é a dificuldade de regular o comportamento. Não significa que ele seja ladrão. No TDAH como eu tenho a questão da desregulação atencional, as habilidades sociais são aprendidas pela observação do ambiente. Então, se eu tenho déficits atencionais muito graves, se eu não reparo nuanças do contexto, eu tenho um rebaixamento do meu funcionamento social. Só que também outra diferenciação na hora da intervenção, é muito mais fácil eu ensinar como o mundo funciona para um TDAH, socialmente falando, porque é só uma coisa que ele perdeu, do que eu ensinar o funcionamento do mundo social para um TEA, pois para ele simplesmente não faz sentido.
Porque ele não tem leitura. O TDAH, se você conduzir, terá essa leitura.
Exatamente, porque perdeu a informação. Não é que não faz sentido.
E falando um pouco sobre as avaliações diagnósticas, como é que se dá a diferença entre um TDAH grave e um TEA leve, um autista mais “funcional”?
Não é um diagnóstico diferencial muito simples. Primeira coisa, precisamos avaliar o histórico do desenvolvimento, e a maneira técnica que a gente usa é observar o núcleo de dificuldade. No TEA, eu tenho as dificuldades de comportamento rígido e repetitivo e déficit na qualidade da interação e comunicação social. No TDAH eu tenho o déficit na autorregulação do comportamento. Então eu vou sempre ver o que explica aquele fenômeno de dificuldade. Dificuldade de manejo de frustração é uma coisa que está sempre muito ligada ao TDAH, mas isso também acontece no TEA. E no TEA eu tenho essa dificuldade no manejo da frustração pela rigidez. No TDAH eu tenho essa dificuldade, pela questão da autorregulação do comportamento.
Então, tudo no TDAH está ligado a essa questão da regulação do comportamento. Uma dúvida que surgiu: TDAH e autista, ambos podem ter hiperfoco. Mas é de maneira igual? Qual a diferença?
Pode parecer igual, e, quanto mais nova a criança, mais difícil é a gente saber. Quando nós avaliamos o adulto e até adolescentes mais velhos, eu ate brinco dizendo que eu sou um profeta do acontecido, pois tenho todo o histórico do indivíduo. Nas crianças nós sempre utilizamos a estratégia de resposta à intervenção. Eu converso com os pais, explico que aquela intervenção pode seguir um caminho ou outro.
Eu tenho um menino, ainda na dúvida se é um TDAH ou TEA, com déficits nas habilidades sociais. Independentemente de um ou o outro, vocês concordam que a gente não intervém no diagnóstico e sim no indivíduo?
Ele precisa de uma estimulação das habilidades sociais. Se ele responder muito bem, isso me chama muito mais atenção para um TDAH e não TEA. Porque no TEA o núcleo da dificuldade é na habilidade social e não a questão atencional.
Por isso um bom processo diagnóstico envolve histórias clinicas não só com os pais, eventualmente com outros cuidadores, e eu acho imprescindível uma conversa com a escola. Dou até dica para os profissionais que estão nos assistindo: vá até a escola, pode até mandar questionário, mas não deixe de ir à escola. A escola está no dia a dia. O contexto clínico é muito artificial. A professora tem muitos parâmetros. É o funcionamento diário que nos dará indícios para a gente sobre o que explica aquela dificuldade.
A mesma coisa do “O que explica a febre?” Não, não teve nada de diferente na rotina da criança, então não é nenhuma variação a novidades. A gente diz: mas ontem ela comeu uma comida nova a que não estava acostumada. Opa, isso pode estar na origem da febre. Então isso significa que eu preciso rever a alimentação dela, não é como eu estou manejando-a.
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