Autismo e Mercado de Trabalho: Como é ser uma autista em grandes veículos de Comunicação? - O Mundo Autista
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Autismo e Mercado de Trabalho: Como é ser uma autista em grandes veículos de Comunicação?

Victor Mendonça e Selma Sueli Silva

Victor: O programa de hoje é muito especial. Aliás, qual programa não é? Nós sempre nos preocupamos em fazer algo que seja especial para vocês, mas é um programa que é muito afetivo para mim porque vamos falar sobre como é ser um autista em grandes veículos de comunicação. Minha mãe vai falar um pouco mais sobre isso, mas ela tinha um pouco de dificuldade, por causa do autismo, para a comunicação e interação social, foi trabalhando isso na medida em que foi fazendo cursos de comunicação e já é radialista há mais de 30 anos, trabalhou em jornalismo e assessoria de imprensa de grandes veículos, foi assessora chefe do INSS, trabalhou em uma grande rádio aqui de Minas por 15 anos. Parabéns, mamãe, você estreou um programa novo para a rádio Super, que se chama “Interessa” e vai ao ar de 14 às 15h da tarde, de segunda a sexta, na rádio Super 91.7. Estou muito feliz por você, e orgulhoso.

Selma: Obrigado filho, eu agradeço muito pela parceria que eu tenho com você, que me traz tanta confiança e jovialidade. A certeza que nosso momento é aqui e agora, que a nossa estreia é agora, é quando você abre seu olho de manhã, já está estreando.

Victor: É bom esse espírito de recomeço todos os dias. Muita gente, principalmente os que não têm muito conhecimento sobre os nuances do meu autismo, podem pensar: mas uma autista, mas eu e mamãe somos autistas, somos jornalistas, comunicadores, passei agora no mestrado de comunicação social na UFMG, mas como é para você trabalhar em grandes veículos de comunicação, entrevistando pessoas em altos cargos de autoridade, como produtora e pessoa que fica ao microfone. Como é isso para você?

Selma: Na realidade, tudo começou há alguns anos, quando eu deixei a área que eu tinha escolhido num primeiro momento, um curso técnico em edificações no CEFET- MG. Bons tempos, eu cheguei a trabalhar como técnica orçamentista durante cinco anos. Mas, resolvi apostar em outra área, que era exatamente minha dificuldade, que era entender a comunicação, o mundo à minha volta. E, trabalhando com edificações, foi quando eu entrei no mercado de trabalho, e foi quando eu tive o baque maior. O mercado de trabalho é muito complicado, e eu não conseguia entender essas regras, essas técnicas.

Victor: O trato social, né?

Selma: Exatamente.
No meu livro “Minha vida de trás para frente” eu conto que quando eu trabalhei como técnica de edificações orçamentista, para vocês terem uma ideia, levar marmita eu não conseguia, esquentar a comida e eu não conseguia, e isso é um saco para os colegas, ir ao barzinho da esquina também não conseguia. Eu passei a levar salada e comer dentro do banheiro. Não é onde tem o vaso sanitário, viu?
Então aqui eu conto isso tudo.

Victor: E nesse livro também conta sobre a experiência..

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Selma: … Calma, vou chegar lá.

Victor: … Sobre a magia do rádio.

Selma: Tudo começou então lá atrás, resolvi trocar de área e fui para a de comunicação social, muito certa de que queria fazer jornalismo. Gente, o cérebro de neurodivergente é muito interessante, quando eu entrei e tive contato com aquilo, eu falei: “Não, eu não tenho maturidade para ser jornalista, vou fazer primeiro relações públicas”. E fiz relações públicas, que foi bola dentro, Victor, porque Relações Públicas tinha muito menos alunos e eu tive quase que uma pós-graduação. Aprendi muito de administração, que para mim foi bom posteriormente.

Victor: Você também já fez uma pós em comunicação.

Selma: Vou chegar lá.

Victor: Eu fico dando spoiler.

Selma: É que eu estou na linha do tempo, se você me coloca lá para frente eu fico confusa.

Victor: É comunicadora, mas é autista ainda, gente.

Selma: Voltando, onde mesmo que eu estava?

Victor: Relações públicas.

Selma: Sim, fiz relações públicas, trabalhei e logo que eu me formei eu continuei trabalhando com jornalismo. Mais ciente e consciente de mim. Quando eu me formei em jornalismo, eu continuei trabalhando com relações públicas, mas surgiu uma oportunidade e eu fui escolhida por ser jornalista, mas eu me dei melhor porque eu era relações públicas e tinha uma noção muito grande de gerenciamento, que foi para ser assessora de comunicação do INSS. E aí, na turma de jornalismo, hoje ainda persiste um pouco, “Jornalista de assessoria, não é jornalista”. Jornalista é Jornalista e pronto, onde quer que esteja, se ele for um bom profissional, ele vai fazer um bom trabalho.
Você estando dentro da assessoria de comunicação, você tem que ter conhecimento das redações de rádio, jornal, televisão, para você ser uma ponte eficiente entre o repórter e a empresa da qual você é o assessor de imprensa. Eu tinha uma equipe para liderar, então relações públicas me ajudou nisso, e meu cérebro neurodivergente também. Eu me lembro de uma primeira entrevista que eu fiz, uma das pessoas da equipe falou comigo “Selma, mas você tem dois pesos e duas medidas”. Se você não é visto, você não é lembrado, você não pode faltar porque senão eles percebem que você não faz falta, você tem que julgar todo mundo igual, ainda sim meu cérebro neurodivergente me fez responder “Claro que eu tenho dois pesos e duas medidas, óbvio, eu estou lidando com seres humanos e cada um é cada um”. Por exemplo, você é casada e tem dois filhos; você acha que eu posso, na hora de pensar em férias ou em folga, pensar em você como se fosse uma pessoa solteira. Então são dois pesos e duas medidas.

Victor: Essa noção de justiça que a gente tem.

Selma: Exato, e o pensamento lógico. O que me atrapalhou um pouco é a questão da hiperempatia. “Ah fulano de tal foi ser chefe e mudou”. Óbvio, o papel é diferente. A essência continua a mesma, o papel é que é diferente. Então por exemplo: Eu vou sair do serviço, Victor é da minha equipe, chamo o Victor para beber e nós temos que estar no outro dia no serviço às 7h da manhã. Como colega de trabalho eu posso fazer isso, como chefe, ou como líder melhor dizendo, eu não posso. Então é outra coisa. Sim, se mudou, legal. Ele entendeu que o papel dele era outro. Mas quando eu tive esse papel de líder, a minha hiperempatia me atrapalhou, porque eu me colocava tanto no lugar do outro para entender aquela demanda que às vezes eu esquecia que eu também tinha um lugar, nesse livro aqui eu conto pois descobri que para ajudar alguém, é preciso um distanciamento do problema, o mesmo deve ser feito com as nossas próprias questões. Sofrer a dor do outro, igualzinho a ele, nos impede de agir. É necessário se colocar no lugar do outro, experimentar o que ele sente, e voltar para o seu próprio lugar para agir e fazer a diferença na vida das pessoas. Como líder eu pude ajudar melhor, e ai eu vou encurtar a história.

Victor: Mas eu queria fazer um comentário antes de você continuar com a história. Seu livro, “Minha vida de trás para frente” tem muitas histórias, na parte que aborda minha mãe trabalhando no INSS, e na comunicação de modo geral, tem vários vestígios de aprendizado, e isso para mim como autista, como comunicador, fez toda diferença. E você vê logicamente percebendo o que para outras pessoas é intuitivo, para gente que é autista ajuda muito.

Selma: Porque as situações que eu vivi e que tinha dificuldade, eu tinha que organizar e criar estratégias. As estratégias que eu criei ao longo da vida eu coloquei no livro, listando para conseguir esse gerenciamento. Isso lembra uma vez que eu levei o Victor quando pequeno lá na assessoria e todas as pessoas vieram, e o Victor muito bonitinho com dois aninhos, hoje é lindão, antes era “gotosinho”. Aí, uma das técnicas perguntou “Victor, você está na escolinha?” e ele respondeu “Não, tô no trabalho da mamãe”.

Victor: E no rádio, como é que é?

Selma: Depois eu passei para um veículo de comunicação por que eu tenho muita gratidão, pela pessoa que apostou porque eu não sabia ainda nada disso mas, gente, eu tive uma coisa que faz a diferença na vida de qualquer profissional: tem boa vontade, tem embasamento, vai fundo e não tenha medo. Eu fiquei 15 anos nessa rádio, foi um momento maravilhoso.

Victor: Você participava de um quadro de debates, produzia um programa…

Selma: E foi um momento que eu descobri que os ouvintes eram tudo de bom. E quando eu saí dessa rádio e comecei o projeto Mundo Autista, ainda como Mundo Asperger, eu tive esse hiato todo, mas de repente surgiu um convite para um retorno mais fixo na rádio com um programa só meu. Gente, a vida é muito maravilhosa, porque eu não estava acreditando. Um programa a minha cara. O jornal O Tempo tem uma parte que chama “Interessa”, e lá, sabem aquelas pautas maravilhosas, de vanguarda, de pesquisa, de ciência, de comportamento, de tudo? Tá lá. E aí, o diretor executivo, muito antenado, sabia que estava faltando alguma coisa, aproveitando pouco das pautas, e ele começou a delinear o programa no rádio em que a gente ia aproveitar mais essas pautas com uma jornalista que conseguisse conduzir e amarrar essas pautas, trazer convidados, convidar o ouvinte à reflexão, com informações e etc.

Victor: É a sua cara.

Selma: Minha cara. Então, fui convidada para isso, fechamos um contrato e estreamos. Foi muito bacana, porque assim, voltando à tônica do programa, como o autista se dá nesses grandes veículos de comunicação. Aí eu vou falar para você empresa e vou falar para você profissional autista. Eu, mais do que ninguém, conheço minhas fragilidades, então estou sempre atenta a elas para que não pesem desfavoravelmente para a empresa. Mas eu também conheço muito bem as minhas habilidades, e eu trabalho muito em cima delas para que sejam meu diferencial. E outras características que são gerais para os autistas, horário é aquilo e ponto, não tem esse negócio de chegar atrasado. Outra coisa, compromisso: tem que fazer a gente faz e faz bem feito, com foco.

Victor: Com foco a gente dá o máximo do nosso potencial mesmo, em tudo.

Selma: Mesmo que o ambiente tenha deturpado um pouco o cérebro neurodivergente do autista e ele tentar enrolar, ele não vai conseguir. A liderança dele vai perceber. Porque as pessoas sabem exatamente quando estou mentindo, quando não estou dando meu melhor. E o que é maravilhoso, as pessoas não precisam saber. O meu controle de qualidade no trabalho sempre foi meu. Antes que a chefia me cobrasse, eu tenho o meu que eu não admito que seja inferior, mesmo em situações extremas com tudo dando contra, eu tenho que ter pelo menos 70%. A meta é 100%. Como 100% é uma situação de perfeição e mais difícil, eu não admito não ficar em 95% a 98% no dia a dia.

Victor: Gente, eu adoro essa parte de estatística do autismo, é bem legal, e olha que eu detesto matemática.

Selma: Agora tem uma coisa, eu percebi que não era para mim, coisa que eu amo, que é trabalho de reportagem. Eu amo o trabalho de reportagem, mas gente, eu tinha que ter discernimento porque, vamos supor, se você tem uma coordenação no rádio ou no jornal escrito, ou na TV, você chega lá na vibe e já recebe suas pautas, tem que chegar e perceber tudo, e às vezes o ambiente é de caos. Vamos supor, numa entrevista coletiva com o ministro. Um caos.

Victor: Eu estou trabalhando isso em mim também, pois quem sabe um dia eu consiga fazer isso.

Selma: Mas tem uma coisa do seu lado que eu não tinha comigo, eu não sabia do meu diagnóstico.
Mas como o controle de qualidade era o meu, eu não ia me aventurar nisso, mas eu sabia que queria falar ao microfone. E eu provei que no microfone eu conseguia falar e de boa.

Victor: Fazendo a diferença na vida de quem ouve, você é uma voz que muita gente já seguia antes do Mundo Autista, e eles não vão me deixar mentir, realmente muito bom te ouvir.

Selma: E sabe aquela coisa que tem se eu estou trabalhando em um lugar e não tem problema se eu levar a caneta, ou papel ofício porque eu preciso lá para a casa. Eu não dou conta. Dificilmente o cérebro neurodivergente vai dar conta. Sabe aquele negócio que eles usam que é assim: Mas fulano está ganhando aos baldes, não tem problema se eu tirar 30 folhinhas. A lógica do cérebro neurodivergente é, se não é seu, então peça. Levar sem o dono permitir não tem jeito. Eu estou falando isso tudo para que você, empresário, perceba que é super importante ter uma pessoa com deficiência porque ela não é ineficiente. Ela pode ser muito mais eficiente. E ai num dos nossos lançamentos, acho que foi desse livro mesmo, nós contratamos a turma com síndrome de Down para ser os garçons. Vocês não tem ideia. Eles têm a meta, atender bem, te atender, fazer o serviço todo certo sem qualquer preferência de atendimento. Fará com foco e da melhor maneira possível. Estou falando isso pois não é só autista que vai conseguir trabalhar corretamente. Síndrome de Down também. E aí o que o empresário normalmente pensa? Colocar quem tem deficiência no estoque, para fazer empacotamento, e você pode estar perdendo talentos inimagináveis. Então aposte.

Victor: Porque na verdade o lugar da pessoa com deficiência é onde ela quiser.

Selma: Finalizando, agradecendo ao meu público, aos meus ouvintes e a vocês que daqui vão para o rádio, do rádio vêm para cá. Isso para a gente é vida, e valeu a pena. Um dia, eu, que tinha muita dificuldade de me expressar e comunicar vale a pena. Apostar nisso e ganhar tanta gente na minha vida que hoje gosta de mim e me respeita do jeitinho que eu sou, e eu também respeito vocês do jeitinho que vocês são. E é assim que nós estamos construindo 2020 muito melhor que 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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