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Paternidade preta e afeto

Camila Marques e Radija Ohanna

Camila Marques entrevista a cineasta e fotógrafa, Radija Ohanna, que tem forte influência em sua formação, vinda do pai, o professor, artista plástico, escritor e músico Vicente Muzinga. Como é ser filha da mistura perfeita branca e preta? Confira a importância da influência da cultura afro na vida de todos nós.

Camila Marques: Hoje, eu trago uma entrevista muito especial. Vamos entrevistar ela, que cuida da nossa edição e que é a diretora de fotografia do nosso canal, a cineasta Radija Ohanna. Ela vai conversar com a gente sobre a paternidade preta. A ligação da Radija com a arte é de família. Seu pai, Vicente Muzinga é músico, foi professor e foi um dos pioneiros na implantação da política de cotas na Universidade Estadual do Estado de Minas Gerais (UEMG), que tem uma tradição muito forte com a arte.

Radija Ohanna: Desde que me entendo por gente, eu acompanho o trabalho do meu pai. Meu pai é formado em design pela UEMG, depois prestou concurso e foi trabalhar no setor administrativo. Lá dentro, junto com parceiros, ele criou a parte de Núcleo de Estudos de Cultura Afro-brasileira de Pesquisa, de onde derivaram várias coisas lindas e interessantes. Ele foi um pioneiro na luta pelas cotas e em levar a cultura afro, em todas as suas formas, para o público em geral. Ele organizava muitos movimentos culturais, inclusive em torno da UEMG, que na época era na Praça da Liberdade. Eles usavam a praça para produzirem eventos de música, danças de capoeira, enfim, para levar a cultura para o público, que não tinha a noção da beleza e da importância da cultura afro-brasileira dentro da nossa sociedade. Sem contar as inúmeras pesquisas. Ele lançou um livro, contando a trajetória dele dentro da UEMG, nessa parte de pesquisa que se chama ‘O negro na rota da universidade. Os problemas, os dilemas que ele enfrentou para a criação desse núcleo. Agora, aposentado, ele se dedica mais à música. A música dele está envolvida com as pesquisas sobre a cultura afro e o primeiro cd lançado pelo Muzinga, se chama Afrologia, e vem de suas pesquisas, das coisas que ele vivenciou e aprendeu. E até hoje, a música dele tem esse conceito e essa forma direta de levar a cultura negra para as pessoas, porque é algo muito importante. Na verdade, a cultura de todos nós porque a cultura afro está enraizada na nossa cultura como um todo. Mesmo que você não tenha muito acesso, mesmo que você não conheça tão afundo as suas raízes, isso faz parte da nossa cultura, pois somos uma população misturada e diversificada. Temos que saber de onde que a gente vem e de onde vem tudo, seja culinária ou música, a influência da cultura negra é muito grande.

A cineasta Radija Ohanna é entrevistado por Camila Marques

Camila Marques:

A UEMG tem uma tradição muito forte na formação de políticas voltadas para a afrocultura . Aqui em Belo Horizonte, temos locais que fazem parte desse incentivo a afrocultura. Com o crescimento do carnaval de BH, isso ficou mais evidente. Por exemplo, temos o bloco Angola Janga. E, quem faz esse movimento na cidade são justamente os movimentos sociais que, muitas vezes, a sociedade coloca no obscurantismo. Temos o Viaduto Santa Tereza, e a própria praça da Estação que é um local de manifestação de toda essa ciltura também.

Radija Ohanna: Hoje em dia, principalmente no meio do rap, BH tem se destacado e quem está a frente disso são as pessoas pretas e ligadas às suas raízes. Hoje, temos o Djonga, que é o maior rapper do Brasil. É uma pessoa que tem levado a cultura do rap e hip hop para o Brasil e todo o mundo. Belo Horizonte é totalmente rica em sua cultura e, para a cultura negra, o destaque tem sido maior. Antes do Djonga tínhamos o Marcos Ribas, Flávio Renegado, a Marlene Silva, que mesmo sendo carioca, é uma dançarina e professora de dança afro e tem um espaço muito importante dentro do movimento. Nós tivemos diversas pessoas que abriram caminho para que Djonga estivesse nesse patamar. Tivemos Clara Nunes, que levava a música não só de forma geral, falando sobre a cultura, mas também sobre a religiosidade, falava sobre orixás, sobre algo lindo, mas que as pessoas têm muito preconceito por serem religiões de matrizes africanas. Houve todo um processo e BH está em um importante crescimento cultural e, assim como meu pai, que teve sua parte nesse processo. Eu me sinto privilegiada de crescer respirando essa arte e de conhecer essas pessoas. Eu pude entender a importância de falar sobre a cultura afro porque ela é a base da nossa sociedade e isso tem que ser levado a um espaço maior de visibilidade.

Camila Marques: É importante citar esses precursores porque foram eles quem abriram o caminho para que a tag “fogo no racistas” ser o que é hoje. Eu conhecia a biografia de Clara Nunes, mas só fui ter contato com sua obra nos tempos depois, e realmente, gosto muito da obra dela. Radija, eu queria falar com você sobre essa questão de ser filha de um relacionamento interrracial, uma vez que você é filha de uma mulher branca com um homem negro. Na questão do colorismo, quando a gente vai estudar sobre a pessoa mestiça, dentro do meio branco, ele é escuro e dentro do meio negro, ele é claro demais. Como foi a sua formação de identidade?

Radija Ohanna: Eu fui tomar consciência dessas divergências, de em qual lugar eu estaria, um pouco mais tarde. Por viver dentro do meio afro e ter esse contato mais direto, apesar da minha cor, eu não via muita distinção porque eu era muito nova. Entender o racismo velado em essência que eu sofri a vida toda junto ao meu pai, não na pele dele, porque ele tem a cor e a gente sabe. Mesmo tendo traços negros, eu não passo o que meu pai e até você mesma passam ou já passaram. Então, era muito difícil entender onde era o meu lugar. Eu entendi isso mais tarde mesmo, mas eu ouvia histórias sobre isso. Quando eu era criança, meu pai saía comigo e eu tinha cabelos claros e a pele branca. As pessoas perguntavam para o meu pai se ele tinha me sequestrado, apesar de eu ser a cara dele. Hoje, eu tenho a noção do que isso causava a ele, porque de 20 anos para hoje, houve uma mudança enorme. Hoje, já temos a diferença no cuidado das pessoas ao falarem certas coisas. As pessoas achavam que era brincadeira, mas era um racismo velado. Eu me coloco como parda porque eu sou uma mistura dos dois. Eu nem sei em qual lugar me colocar, sinceramente. Se me perguntarem, eu sou uma mistura perfeita do meu pai e da minha mãe. Sou filha de um casal interracial e eu amo muito isso. Tenho um pouco do meu pai e da minha mãe e eu acho isso incrível. Ainda hoje é difícil de entender até onde vai meu lugar de fala, até onde posso me expressar. Apesar de ter contato com a cultura negra a vida toda, ainda tenho essa questão da pele, porque há coisas que não sofri e não vou sofrer, o que é um privilégio enorme. Isso é algo para ser discutido, porque eu tenho medo de passar dos limites.

Camila Marques: Eu tive essa curiosidade porque no meu caso é o inverso: meu pai é mais claro. Embora eu seja retinta, por causa da minha mãe, fisicamente me pareço com meu pai. Então, quando eu era criança, meu pai transitava melhor pelos espaços. Mas, na medida em que cresci, as pessoas sempre começaram a achar que eu era namorada do meu pai, que é divorciado da minha mãe, mas nunca consideravam que eu fosse filha, mesmo parecendo fisicamente. Como meus irmãos são mais claros, eles ficam nesse lugar de transição, como você disse. Essa questão do “sequestro” é ligado ao fato de não humanizarem o homem negro, sempre o colocando nesse lugar de marginalização, mesmo seu pai sendo ligado à arte.

Radija Ohanna: É incrível como as pessoas conseguem ser ignorantes e maldosas. Hoje, meu entendimento sobre as coisas que meu pai passou é muito maior. Algumas pessoas falavam: “A radija é o Vicente na água sanitária”. As pessoa falavam isso como se fosse algo natural, mas não era. E hoje, eu vejo o que foi a luta do meu pai. Ainda há um caminho longo, mas acho que estamos no lugar certo.

Camila Marques: Eu poderia pontuar várias questões sobre ser ser negro em uma visão feminina e sobre as diferenças que nossos pais possuem nesses espaços. Mas, eu queria saber até onde seu pai te influenciou na arte.

Radija: Ele ainda está me influenciando, ele não para de me influenciar. Meu pai sempre me levava e minha mãe ia também porque sempre foi muito companheira nesse sentido. Meu pai fez um evento, que ainda existe chamado Concerto Negro, idealizado pelo Martinho da Vila, junto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na década de 1990 até 2000, nós participamos e integramos a equipe, por causa da parceria da UEMG, com a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Diamantina. Esse evento aconteceu no Palácio das Artes, em Diamantina, e no Rio de Janeiro e eu tive o prazer de participar de todos eles. Assim, eu estive nesse lugar de produção, de música e representatividade desde os seis, sete anos. A experiência mexeu comigo de uma forma tão intensa, que dali em diante, o meu amor só cresceu. E meu pai sempre esteve envolvido nessa trajetória, me levando para fazer aula de dança afro, me levando para shows e eventos. O primeiro exercício que fiz na vida foi aula de capoeira.

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