O desenho como forma comunicação no desenvolvimento infantil - O Mundo Autista
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O desenho como forma comunicação no desenvolvimento infantil

Victor Mendonça e Raquel Romano

Victor Mendonça e Raquel Romano falam sobre o desenho e o desenvolvimento da criança

Victor Mendonça: O desenho que é a uma das primeiras formas de a criança se comunicar. Esse desenho infantil passa por várias etapas de acordo com o desenvolvimento dessa criança. Mas, muitas vezes, a gente não dá a devida atenção a ele, não é mesmo, Raquel?

Raquel Romano: É isso, Victor. Eu tenho muito carinho por esse tema, que acompanho a vida inteira. Eu tive uma escola de arte por 10 anos e nós tínhamos o maior cuidado com esta questão. As crianças entravam pequeninhas e a gente conhecia a criança, conhecia a vida dela, podíamos ter uma comunicação melhor com os pais, por meio da observação dos desenhos dessas crianças. Então, eu queria começar dizendo que qualquer criança, segundo estudos feitos em todo o mundo, crianças de todas as raças, classes sociais, qualquer criança passa por essas fases. Assim, é importante que ela tenha oportunidade de passar por essas fases pois isso vai fazer muita diferença na vida dela. Por exemplo, a criança começa com as *garatujas: eu não vou aqui falar muito em faixas etárias porque eu costumo brincar que os manuais dos mestres e estudiosos antigos já estão defasados nesse sentido. As crianças de hoje estão vindo tão desenvolvidas que há uma estimulação muito maior em todos os sentidos na sua percepção sensorial.

Se você colocar um giz de cera, uma canetinha na mão de uma criança de um ano, ela já expressa o seu grafismo, que a gente chama de garatujas. Essas garatujas começam com movimentos descoordenados, ela ainda não tem um tônus muscular forte, então são riscos leves. A criança não tem nenhuma consciência disso, mas é um movimento prazeroso, é uma catarse muitas vezes ou mesmo um desabafo. Se antes, ela esperneava os braços, chorava, hoje em dia, nessa fase, ela já começa a ter esse recurso, que é muito importante na vida dela.

Então, as garatujas vão evoluindo com o tempo nesse prazer e uma coisa muito importante é: não deve ter interferência dos pais porque é um momento muito importante na vida da criança. Os pais devem oferecer a ela papeis grandes, giz de cera grosso. Agora, aquela criança que não tem acesso ao papel, não tem lápis, pode saber que ela vai, daqui a algum tempo, entrar na fase das garatujas controladas. Também é um momento muito bonito em que ela faz traços longitudinais no papel e quanto mais ela ocupa esse papel mais mostra aquela representação de uma criança extrovertida e espontânea. É muito bonito você ver e acompanhar esse desenvolvimento.

Victor Mendonça: E a gente não pode cortar isso, não é Raquel?

Raquel Romano: Não. Absolutamente. E eu fico muito triste Victor porque, muitas vezes, eu ainda ouço falar e fico perplexa com isso, ainda existem escolas que dão desenhos para a criança colorir, mas que elas preencham esse desenho dentro de um limite. Isso é o um absurdo. A criança está na fase de expandir, ela não tem a consciência do que ela está fazendo ainda e aí, você exige que ela tenha um  controle. Isso é muito repressor para a vida delas.

Victor Mendonça: É até uma metáfora para a vida delas. A gente pode enxergar isso como uma metáfora social mesmo, de que a gente acaba sendo colocado em caixinhas, sempre dentro de limites impostos por alguém.

Raquel Romano: As caixinhas começam aí. E a criança começa a desenvolver esses traços longitudinais, circulares. É lindo quando você acompanha todas as fases das crianças e comemora “olha como fulaninho se expressa” e a gente vê como está representado no desenho o que ele está vivendo na família, lá fora. Observamos se a criança é insegura, mais segura ou agressiva, ou mais impulsiva… Tudo isso o desenho vai nos mostrando para que a gente possa ter atitudes adequadas em relação a essa manifestação. É uma linguagem, a criança não sabe falar de sentimento, falar de emoções ainda.

Depois dessas garatujas controladas a criança passa para as garatujas identificadas. E mesmo nas controladas, ela já fala: “ah, mas isso aqui que é o vovô passeando na rua”, se não tem nenhuma semelhança. E é aí que está o perigo Victor. Quando a mãe, o pai, alguém fala assim: “que isso menino, isso não é vovô coisa nenhuma, não parece nada”. Ao contrário, devemos entrar na dele, deixar que ele se expresse, porque aí ele já está aliando sua expressão gráfica com a sua linguagem. Isso tem a ver com a sua percepção do mundo, ou seja, nesse momento é família, o mundo ainda está restrito, mas é ali que ele vai se perceber. E é interessante nessa fase que a gente oriente os pais: “já pode dar a colher para a criança comer sozinha” porque ela já demonstra esse controle.

Quando ela passa para as garatujas controladas, ela não usa só a mãozinha: ela usa as duas mãos, ela usa os braços com os movimentos circulares, pois os braços já estão então entrando em jogo ali. Ela vai se desenvolvendo e aí que pode ser um erro dar desenho para colorir, pois ela interrompe o processo legítimo, natural, necessário – próprio de cada criança. Apresentam para a criança uma flor, um bicho, alguma coisa, uma figura estereotipada e falam que aquele é o modelo, o bonito. Começam a nos colocar na caixinha, por meio dos estereótipos. Quando a criança é apresentada a um desenho desse como o bonito, o certo, pela sociedade em geral, ela se desencoraja de fazer os seus rabiscos de ousar nas suas expressões e se sentencia: “ah não”, “eu não sei desenhar”.

Victor Mendonça: Verdade, porque, além de mexer com a autoestima da criança, ainda faz com que a gente perca valores de pessoas que poderiam ser mais criativas em vários setores da sociedade. Como você mesma disse, o desenho da criança vai expressar toda a percepção dela de mundo e vai projetar como é que ela pode ser no futuro, inclusive.

Raquel Romano: Exatamente. É um exercício para a vida, para a criatividade, para a autoexpressão, para a vida. Os pais não precisam ter esse entendimento, essa leitura, porque eles não são especialistas nesse assunto, mas o que eles precisam é não bloquear essa espontaneidade na criança. O rabisco é dela, se ela quiser botar chifre no cavalo, ela põe, o cavalo é dela. “Ah, mas que isso: isso é árvore?”. “Isso aqui é a árvore do lado da fazenda da vovó?”.  “Essa árvore não voa, essa árvore está voando?”.  Essa criança ainda não tem noção de perspectiva, noção de base, ela não tem noção de como fazer uma árvore no chão. Então, essa crítica é absolutamente nociva, porque a criança vai falar: “Poxa, eu não sei desenhar a árvore da fazenda da vovó.”. E para essa criança, o mais importante é a memória afetiva que ela colocava no papel no seu desenho. Assim como ela vai evoluindo e passa para a fase pré esquemática e eu acho essa fase belíssima porque é quando ela já tem a noção do círculo e ela faz muitos círculos nos desenhos, ela enche de círculos o papel.

A gente que faz a leitura, que sabe fazer a leitura, já entende que aquilo já é o cérebro, é o pensamento, já é a representação da cabeça do ser humano. Isso é a coisa mais linda de se ver. A partir daí, ela começa a desenhar o ser humano, conforme as suas percepções de mundo, as suas frustrações, suas emoções. “Ah, é o meu pai que chegou bêbado em casa”, então, ele faz aquele monstro, ou aquela madrinha que ela ama: faz uma boneca toda enfeitada, sem proporção ainda, mas com uma espontaneidade levada por sua percepção das pessoas e do mundo. É aí que entra o sentimento da emoção, afetividade, entende?  E essa evolução vai crescendo, desde que não chegue alguém que diga: “Mas poxa, o tronco da sua árvore não é marrom”. O tronco da árvore dela não tem que ser marrom. É dela, pode ser da cor que ela quiser. Não se pode impedir que ela tenha essa liberdade de expressão.

Victor Mendonça: É muito bom bater muito nessa tecla, para a gente não correr o risco de limitar um ser em evolução. Quando a gente não vê, não percebe a intenção no desenho de uma criança, eles podem estar querendo expressar coisas grandiosas. Para finalizar, eu vou recomendar um filme de uma pessoa que, supostamente seja autista, embora ela nunca tenha falado publicamente sobre isso, que é o diretor de cinema Tim Burton. A ex-esposa dele, a atriz Helena Bonham Carter, já falou que ele estaria no espectro, mas ele nunca confirmou isso. Tim Burton fez um curta-metragem maravilhoso nos anos 80, chamado Vincent. Eu recomendo que procurem porque é como a criança percebe o mundo e vai ilustrar bem tudo isso que falamos.

 *Garatujas são desenhos disformes, tortos. Podendo ser, também, uma letra ruim.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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