Antirracismo e Anticapacitismo é coisa séria: a luta não é mimimi - O Mundo Autista
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Antirracismo e Anticapacitismo é coisa séria: a luta não é mimimi

Selma Sueli Silva e Camila Marques

Qual é o papel das lutas afirmativas? Entenda sobre isso com Selma Sueli Silva e Camila Marques.

Selma Sueli Silva: Nossos assuntos anteriores, me levaram, a mim e a Camila a uma reflexão sobre determinadas lutas ativistas: o feminismo, racismo, mulher com deficiência, anti capacitismo, autismo não é adjetivo, afinal, luta é o que não falta. Será que isso não é mi mi mi de uma sociedade que está mais chata? Não. Vamos tentar entender a importância desses movimentos. Em termos de história, até bem pouco tempo, as pessoas com deficiências, PCDs ficavam reclusas em casa, escondidas. A família que tinha uma pessoa com deficiência escondia essa pessoa. Ou pior, as internavam em asilos, onde não havia a preocupação com o ser humano, o objetivo era domar aquela pessoa diferente. Dá-lhe remédio, dá-lhe maus tratos, os asilos, os manicômios de Barbacena estão aí para contar essa história.

Aqui no Brasil, no final da década de 1960, início da década de 70, inicia-se a luta pelas pessoas com deficiência. Mas somente com a Constituição que resultou da *Constituinte de 1988 é que as pessoas com deficiência viram a possibilidade de perderem a tutela, ou da família ou das instituições ou do Estado e para mostrarem que elas têm voz. Foi o início de um trabalho para que essas pessoas tivessem seus direitos sejam reconhecidos. Mas, por que isso? Porque um corpo que saísse de uma pretensa normalidade, uma mente diferente já era motivo de inferências para o pedido de impedimento legal. Tudo por causa de uma sociedade opressora que queria impedir que aquele corpo, aquela pessoa se manifestasse porque poderia “poluir” o ideal de normalidade. Surge então, a luta pela liberdade e pelos direitos civis. Para a pessoa com deficiência essa luta começou pelas famílias, a pessoa com deficiência ainda não tinha voz.

É de pouco tempo que as PCDs ganham voz, lá no finalzinho da década de 1980, mais pontualmente na década de 1990. Surge o lema Nada sobre nós sem nós’. Quando as pessoas com deficiência se lançam nessa luta, percebe-se, como já falamos em textos passados, outros impeditivos, por exemplo, a pessoa com deficiência também com a questão do gênero. Hoje ano 2020, a 10 anos de 2030, em que a gente tem os **17 objetivos da ONU para cumprir, não podemos deixar ninguém para trás. Em todas as áreas como a luta anti-homofobia: “Ah, Selma, vocês não estão falando só de autismo, vocês começaram com um tal de LGBTQI+”. Sim, somos todos seres humanos. A gente fala aqui de seres humanos. Então, a luta anti-homofobia, a luta antirracismo, a luta anticapacitismo, todas elas são necessárias e legítimas. Eu já dei para vocês aqui um breve parâmetro da questão anticapacitista. E aí, Camila, dê um breve parâmetro da luta antirracismo.

Camila Marques: Seria muita pretensão minha falar que a luta negra começou a partir de tal data. Não, não é bem assim. Tudo que eu falo aqui é a partir de uma ótica feminina, por eu ser mulher. Mas, é importante lembrar que o feminismo veio da luta das mulheres brancas para irem para o mercado de trabalho, dentre outras demandas. Mas nós, mulheres negras nunca estivemos fora do mercado. Quando pensamos na luta dos negros contra a escravidão, pelo menos aqui no Brasil, esses movimentos negros atuavam na clandestinidade. Então, a questão só politizou, aqui no Brasil, mais recentemente, nos anos 70, com o ***Black Power como reflexo do movimento ***Panteras Negras, nos Estados Unidos. A Ângela Davis tem um livro que se chama Mulheres, raça e classe, que fala sobre isso, sobre esse contexto de escravidão e de luta. Primeiro, nos anos 1960, nos Estados Unidos e depois, anos 70, aqui no Brasil.

Nos anos 90, começam os primeiros eventos, seminários a respeito das políticas negras, no Brasil. Ainda assim, o sistema de cotas, por exemplo, foi implementado aos poucos, antes de ser tornar Lei****. Tudo é construído muito passo a passo. E esses pequenos passos foram dados graças às lutas de grupos pelos direitos humanos.

Antes, só tinha direito a ter voz na sociedade quem tinha boa condição financeira. O ativismo é que vem modificando essa situação.

Selma Sueli Silva: Se tudo isso é tão recente e a gente pensa em humanidade ad aeternum (para sempre), há muita coisa a se fazer. Nós já caminhamos muito, eu sou muito grata à vida, mas eu não posso esquecer de que na minha juventude, casar grávida ou iniciar a vida sexual antes do casamento, ainda era tabu. Então, vocês percebam quanta coisa já mudou. Mas a luta continua!

*A Constituinte de 1988 foi instalada no Congresso Nacional em 1/02/1987, resultante da Emenda Constitucional nº 26, de 1985, com a finalidade de elaborar uma Constituição democrática para o Brasil, após 21 anos sob regime militar.

**Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável são uma coleção de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. As metas são amplas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todos os 169 alvos indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os tópicos abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social.

*** O movimento Black Power foi proeminente no final dos anos 60 e início dos 70, enfatizando o orgulho racial e a criação de instituições políticas e culturais negras para cultivar e promover interesses coletivos negros e avançar valores negros.

*** Os Panteras Negras foram um partido político norte-americano surgido em defesa da comunidade afro-americana. Esse partido originou-se, a princípio, como um grupo voltado ao combate contra a violência policial contra os negros durante a década de 1960, no contexto do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos.

**** Embora tenha se tornado lei apenas em 2012 (Lei 12.711/2012), a política de cotas nas Universidades do Brasil foi implementada aos poucos. Ela passou por várias modificações, várias formas de adoção antes de se tornar lei. A primeira proposta de implantação de um sistema de cotas raciais no Brasil foi apresentada em 17 de novembro de 1999, durante a Semana da Consciência Negra, na Biblioteca Central da Universidade de Brasília que viria a ser aprovada em 2003 e finalmente implantada em 2004. A Universidade de Brasília foi a primeira instituição federal a reservar vagas para negros em 2004. Vale considerar também que políticas de cotas podem também ser direcionadas aos seguintes grupos: cotas de Gênero Sexual, cotas socioeconômicas, cotas para deficientes e outros grupos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Andreia
Andreia
7 meses atrás

Este foi o quarto artigo que acabei de ler relacionado a esse tema e foi o que mais deixou claro para mim. Gostei. aplicativos modificados